quarta-feira, 28 de junho de 2023

 Aspectos Epistemológicos da TMI

 Regina Fernandes

Comecei a dar aulas de Teologia em 1995. Iniciei com Introdução ao Evangelismo usando as obras de Orlando Costas como material bibliográfico. Após fazer um curso de cinco dias sobre Hermenêutica Contextual com Padilla, no final da década de 90, organizado por Ricardo Barbosa na cidade de Brasília, resolvi estudar mais a Missão Integral. Sempre usei em minhas aulas textos de Orlando Costas, Padilla, Escobar, as obras organizadas por Steuernagel, documentos dos congressos e outros. Meus alunos (as) se encantavam com a ideia de uma missão integradora, mas quando escreviam seus artigos e monografias faziam Teologia da Libertação. Certa vez, quis saber por que isso acontecia, e me disseram: “Missão Integral é um movimento lindo, em termos de ideias é como uma nuvem grande e fofa sobre as nossas cabeças, mas quando levantamos a mão para pegar ela se esvai, desaparece na falta de organização teórica para a construção do pensamento!”.

Fiz um mestrado em Missiologia com teólogos da Missão Integral. Embora havia ideias muito interessantes, compreendi que os alunos/as estavam certos, pois percebi certa resistência em se assumir a teologia da Missão Integral. Ouvi a descreverem como sendo uma inspiração, um vento, uma brisa suave, até uma fumaça. Conclui que se ela é algo tão intangível em nível de ideias, há razão para que os jovens busquem outras teologias. Somente não compreendi muito bem na época a existência de uma fraternidade teológica, se não era para fazer, ordenar e construir teologias. Em outro mestrado, em uma faculdade Jesuíta, sob orientação do Pe João Batista Libânio, me propus em estudar o “como se faz teologia” latino-americana. Mas Libânio me avisou que não conhecia essa tal de Missão Integral, então, pedi ao René Padilla que lesse meus textos, o que de pronto ele aceitou e me acompanhou nos estudos.

Essas foram situações de vida que provocaram minha reflexão sobre uma possível teologia da Missão Integral, iniciada em 1998, testada em classes, leituras e observações diversas até minha atual experiência como presidente do CD da FTL.

A América Latina, assim como Ásia e África, foi o principal palco do missionarismo protestante moderno, que se espalhou por várias partes do mundo no impulso do fervor dos avivamentos religiosos, ao mesmo tempo, das políticas e ideais expansionistas e imperialistas norte-americanas e colonialistas europeus. Dentre as muitas interferências que os imperialismos e colonialismos fizeram em nosso meio está o esforço por nos convencer de que não deveríamos nos ocupar em fazer ciência, realizar pesquisas, construir pensamentos, portanto, teologias. No caso missionário, dentre as muitas razões para tais impedimentos, podemos apontar três delas:

1)     Doutrinária – temiam que teologias autóctones fosse, doutrinariamente, diferente da teologia deles. Ouvimos isso certa vez de um missionário inglês em relação à indígenas evangélicos, que não deveriam se envolver com teologia ou evangelização pois resultaria em sincretismo. Um pastor africano que fazia mestrado no Brasil disse que também ouviu isso de missionários em seu país, portanto, resolveu estudar sem o apoio deles.

2)     Controle – todos/as sabemos que o principal meio de emancipação de um povo é a educação. O educador Paulo Freire, no Brasil, escreveu várias obras sobre isso. Impedir o aprofundamento do conhecimento é sempre impedir autonomias.

3)     Ênfase prática – os missionários que vieram para a América Latina eram caracteristicamente práticos em seu ministério, daí reduzir à missão da Igreja à sua atuação prática e ensinar que a teologia válida é somente aquela prática.

Em 1980 Padilla escreveu um texto sobre Hermenêutica Contextual, de 25 páginas, que se tornou leitura clássica sobre o assunto. Além de missionários e missiólogos estrangeiros ele usou a teoria da fusão de horizontes do alemão Hans Georg Gadamer, estudos em metodologia teológica dos latinos Howard Snyder, da República Dominicana, do uruguaio Juan Luís Segundo e do argentino Severino Croatto.

Juan Luís Segundo propôs o Círculo Hermenêutico como método teológico, de Libertação da Teologia, e Padilla o utilizou como modo de aproximação das Escrituras. Todavia, Padilla critica a limitação às ciências, principalmente às Ciências Sociais, mediação teórica própria da Teologia da Libertação, para a análise da realidade. Para ele, essa restrição científica e inclusive ideológica transforma o Círculo Hermenêutico em um Círculo Vicioso. Para Padilla há possibilidade da participação das Escrituras e da experiência da vida no mundo como mediação para compreensão da realidade em todo o processo do fazer teológico. Fica evidente seu esforço por uma teologia latino-americana evangélica, que assegura a autoridade das Escrituras em todo o processo de construção teológica, ainda que o contexto seja visto como o ponto de partida da comunidade teologal.

O uso da metodologia hermenêutica de Severino Croatto ele também realiza de forma crítica, ao argumentar que não basta reconhecer a importância do contexto na compreensão bíblica, mas compreender a palavra de Deus nele e não para mera extração do querigma, pois isso incorreria em uma descontextualização das Escrituras.

Júlio Zabatiero, em um artigo publicado em 2017,[1] analisa esse texto de Padilla após 35 anos de circulação e aponta para a sua importância como um trabalho inicial na questão da metodologia hermenêutica da Missão Integral, mas chama a atenção para o salto hermenêutico que ele parece dar entre comunidade bíblica e comunidade atual, não considerando como deveria a recepção do texto bíblico ao longo da história da Igreja e da tradição cristã. Como biblista, Padilla não se ocupou em fazer o retorno à tradição do pensamento cristão a partir da fé evangélica latino-americana e das ideias de Missão Integral. Steuernagel apontou caminhos para esse esforço com a obra Obediência Missionária e Prática Histórica e Justo Gonzalez já nos fornece uma historiografia da Igreja e do seu pensamento teológico e missionário a partir de uma linguagem mais reconhecidamente latino-americana.

Nunca consegui ver esse texto de Padilla como mero artigo sobre hermenêutica bíblica, até mesmo por causa do seu diálogo com a metodologia teológica de Juan Luís Segundo. Para mim, ele serviu de ponto de partida para compreender como os teólogos e teólogas do movimento de Missão Integral estavam construindo seu pensamento teológico. Nele, estão as linhas iniciais de uma epistemologia da teologia da Missão Integral, que a define inclusive como teologia contextual. Perguntei a Padilla certa vez porque não avançaram nessa discussão, como fizeram Gustavo, Gutiérrez, Juan Luís Segundo, Leonardo Boff, Clodovis Boff, João Batista Libânio e outros da Teologia da Libertação. Ele respondeu: “éramos um grupo de teólogos pastores, professores, pais e ocupados com tantas coisas que não podíamos nos dedicar a esse aprofundamento teórico. Sabíamos que era preciso, mas nunca encontrávamos tempo e condições para esse trabalho!”. Isso se comprova no prefácio que ele escreveu para um livro que publiquei onde disse: “Outro dos valores desta obra é a articulação, de maneira sistemática, do método teológico da TMI. Poderíamos dizer que, com ela, a geração de teólogos à qual pertence Regina, salda a dívida não quitada pela geração que a precedeu — a dos fundadores da Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL).”

Aqueles e aquelas que são da área teológica sabem que não podemos falar de uma Missão Integral sem que falemos de uma teologia da Missão Integral. O próprio termo “missão”, no uso feito no meio cristão, inclusive na América Latina, procede da ideia do apostolado da Igreja no mundo, um conceito teológico. Não há como falar de missão cristã se não for teologicamente. O adjetivo “integral”, vinculado à Missão a partir da América Latina, já era utilizado na época pela filosofia, aparece em documentos do Vaticano II e em relatórios finais das CELAs. Sua ideia também se vincula às teorias das abordagens sistêmicas e da complexidade já em voga no período de surgimento do movimento de Missão Integral. Todavia, é possível afirmar que é na contemporaneidade que esse termo tem encontrado um melhor sentido possível para a compreensão da realidade com as ecoteologias e mesmo com as novas visões de mundo provocadas pelas tecnologias. Outro tema que merece aprofundamentos.

A Teologia da Missão Integral tem início com o Movimento de Missão Integral, que, conforme Padilla, é um movimento missional/pastoral. No incurso desse movimento, no esforço de explicá-lo e dar-lhe bases bíblicas, uma teologia começou a brotar do seu interior, ainda que não devidamente ordenada epistemologicamente. Diálogos e mediações teóricas foram realizados, o que se percebe na participação de tantos profissionais de outras áreas do conhecimento nas discussões, entre eles, podemos destacar Tito Paredes e a Antropologia Cultural.

Esforços como esse texto do Padilla sobre Hermenêutica Contextual também foram realizados por Pedro Savage, no texto: O Labor teológico num contexto latino-americano. Boletim Teológico FTL-Brasil 2/5 (1985) 53-81. Outro a se ocupar de métodos teológicos foi Juan Stam ao tratar sobre a contextualização “da teologia na América Latina”, nos textos: Teologia, Contexto y Práxis: Una Visión de la Tarea Teológica. Práxis 7 (2005) 121-136; e em: A Bíblia, o leitor e seu contexto histórico. Pautas para uma hermenêutica evangélica contextual. In: Boletim Teológico 1/3 (1984) 92-136 (SANCHES, 2020, p. 10). Devemos considerar também a importante obra de Samuel Escobar La Fé Evangélica y las Teologías de la Liberación, e um texto mais curto, mas igualmente importante: Uma análise latino-americana da Teologia Latino-americana. Um texto um pouco mais recente, organizado por Oscar Campos é Teología Evangélica para el contexto latino-americano. No Brasil chamamos a atenção para a obra de Júlio Zabatiero, Hermenêutica Contextual, que propõe um método semio-discursivo para a hermenêutica da Missão Integral, e o livro de Sidney Sanches: Teologia Contextual, que aponta aspectos metodológicos da teologia evangélica latino-americana. Há também uma contribuição importante de Catalina Padilla com sua obra: La Palabra de Dios para el Pueblo de Dios, que é um manual de hermenêutica contextual para o estudo grupal da Bíblia. É possível situar ainda hoje os estudos decoloniais, no âmbito do pensamento evangélicos latino-americano, como contribuições para uma epistemologia da teologia da Missão Integral, como aqueles que vem sendo realizados por Nicolás Pannoto.

Ainda na geração inicial do movimento de Missão Integral devemos situar Orlando Costas, que fez eco à afirmação de Clodovis Boff ao declarar que na América Latina estava surgindo uma nova maneira de fazer teologia. Padilla também fez essa mesma afirmação em referência à teologia evangélica latino-americana: “Trata-se de ‘uma nova maneira de fazer teologia’ que leva muito a sério: a Revelação de Deus em Cristo Jesus, da qual dá testemunho as Sagradas Escrituras, e o contexto sócioeconômico, político, cultural e religioso no qual a Igreja é chamada a cumprir sua vocação missionária.” (FERNANDES, 2019, p. 5)

As discussões dos textos mencionados podem ser vistos como apontamentos para uma epistemologia da teologia da Missão Integral, pois se referem aos modos como ela se faz, a partir da América Latina. Destacam a importância de se compreender o contexto com a ajuda das ciências diversas, das sabedorias populares, da nossa experiência de vida e, principalmente, das Escrituras Sagradas que são palavra de Deus na vida (como ensina Carlos Mesters). O recurso às Escrituras deve ser realizado também com mediações diversas e procurando compreender a vida em que a palavra de Deus foi entranhada. Todo esse exercício deve resultar em uma nova compreensão da missão da Igreja, transformadora do contexto, mas que também auxilia em outras compreensões da realidade no incurso do Círculo Hermenêutico. A suspeita, que Padilla chama de discernimento, é a atitude da teóloga, do teólogo e da comunidade teologal, sobre os diversos condicionamentos sobre nossa compreensão do contexto, das Escrituras e da prática da missão.

É um erro considerar que Orlando Costas, Juan Stam, René Padilla, Pedro Savage, Pedro Arãna, Samuel Escobar e tantos outros teólogos pensadores do movimento de Missão Integral, possuíam um pensamento simples e sem percursos epistêmicos. A questão é que, como disse o próprio Padilla, não houve tempo e condições propícias para essa ordenação. Mas isso não significa que não possa ser feito por uma nova geração de teólogos e teólogas e no âmbito da Fraternidade Teológica Latino-americana, que foi criada em 1970 justamente para isso. Se Missão Integral não pode existir na sua forma de teologia também acadêmica, não é integral.

Conclusões

As instituições teológicas na América Latina devem, certamente, se ocupar do estudo histórico, metodológico e sistemático da teologia da Missão Integral, para que nossa missão não continue a sofrer da dicotomia entre teologia x missão, pensamento x prática. Se o medo da maioria é a excessiva sistematização, temos que pensar em novos modos de sistematizar, pois para isso Deus nos fez criativos. Minha opinião, é que se fizermos isso no incurso do círculo hermenêutico, conforme proposto por Padilla e Juan Stam, não haverá risco de transformá-la em uma grande estrutura sistemática, por isso é nova maneira de fazer teologia. Uma teologia com possibilidade de ir se fazendo (no gerúndio), de ir se transformando conforme se transforma o contexto. Essa é sua grande novidade epistemológica.

Para maior aprofundamento do assunto leia a obra:



 Bibliografia

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[1] ZABATIERO, Julio Paulo Tavares. Novos Rumos de uma Hermenêutica Contextual: 35 Anos de "Rumo A Uma Hermenêutica Contextual", de C. R. Padilla. In.: Revista Estudos Teológicos. São Leopoldo: EST. Disponível em: <http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/2473>. Acesso em 21/05.

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