terça-feira, 25 de outubro de 2022

Uma família (não tão) ideal de Jesus!

 


Por Regina Fernandes

Esse texto é uma reflexão, a partir de uma análise da família de Jesus com base em uma hermenêutica mais realista e contra as idealizações patriarcais, principalmente contemporânea, que visam impor um modelo de família que não existe e nunca existiu, a não ser a partir de construções forçadas e sofridas, que muitos aderem sem o respectivo conhecimento bíblico e mesmo sem olhar mais detidamente para a configuração da própria família e suas imperfeições.

A Bíblia nos conta que José e Maria eram noivos. Na sociedade judaica daquela época o noivado era um compromisso tão sério quanto o casamento e a mulher somente poderia ser deixada em caso de repúdio. Quando José soube da gravidez de Mateus diz que ele intentou deixá-la, “repudiá-la”, porém, preocupado com ela, não quis denunciá-la às autoridades religiosas, mas fazer isso secretamente. Isso significa que, mesmo tendo a mesma fé que Maria, ele não deve ter acreditado nas justificativas que ela deu para a gravidez, pois se isso tivesse acontecido não teria pensado em deixá-la, e o redator bíblico ou a tradição (patriarcal) da Igreja não teriam tido a necessidade de justificá-lo. José sabia que ao deixá-la ela sofreria um dano social que a marcaria pela restante da vida. Outra situação de não assumir a criança é que naquela cultura quem dava nome aos filhos era o pai, então Jesus não seria “filho de...” (um homem, nesse caso), como era a composição dos nomes na época, inclusive para a inclusão genealógica. Mateus coloca Jesus na genealogia de José vinculando-o a toda ancestralidade davídica, mas faz questão de observar: “Jacó gerou a José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo.” (Mat. 1.16). Lucas, em sua genealogia de Jesus menciona: “Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era, conforme se supunha, filho de José...” (3.23).

O texto bíblico diz que um milagre dos céus, no caso, uma angelofania, impediu José de fazer essa loucura, de deixar uma jovem adolescente sozinha numa sociedade patriarcal, cuidando do próprio filho que nem mesmo teria o nome de um homem. A história bíblica continua relatando esforços de cuidado depois dessa mudança de comportamento de José, sua conversão para a família a partir da intervenção divina, a fuga para o Egito para proteger a criança e depois o ensina da profissão de carpinteiro.

Há muitas histórias nessa história, inclusive de relatos e tradições patriarcais da Igreja que tentam a todo custo preservar a figura masculina de José. Certamente, uma situação é verdadeira, em princípio e tendo como base essa condição masculina inicial José quis ir embora, abandonar a família, como muitos homens fazem desde os tempos mais remotos, e ainda sendo justificado pelos redatores do texto bíblico de que estava fazendo isso pelo bem da família. Na realidade, na maioria dos casos, sabemos, que homens abandonam as famílias pensando em si próprios, tomados por um egoísmo machocêntrico, pensando na sua própria reputação social, nos seus interesses, no seu bem-estar, na sua incapacidade de lidar com novas configurações de vida e orientados por sua eterna adolescência.

Maria era muito jovem quando engravidou, não é preciso muito esforço para imaginá-la cheia de dúvidas, de medos e de silêncio. O que falar numa hora dessas afinal? – Não se tratava somente de uma responsabilidade religiosa, mas de uma criança, do seu filho. Por vezes, esquecemos que quem estava na barriga de Maria era uma criança que correu o risco de ser abandonada por um pai humano. Descobrir uma gravidez, não a entender direito, ser desacreditada pelo noivo, o que implicaria em ser desacreditada por toda aquela sociedade, teria sido uma experiência muito difícil de vida. Somente essa situação tão de mulher em todos os tempos é suficiente para dedicar a Maria uma admiração especial.

José, diante da intervenção divina, decidiu assumir o filho, casar-se com ela, dar seu nome à criança, agir como pessoa responsável. José adotou Jesus.

Não sabemos com detalhes o que aconteceu depois, como ficou essa história de Maria com José, a tradição prefere acreditar que ele morreu cedo e Maria ficou sozinha, pois ele desaparece dos relatos e o que temos é a história de Jesus com a sua mãe. É possível que em outras tradições, mesmo apócrifas, seja possível descobrir algum fato novo. Maria é relatada diversas vezes ao lado de Jesus e, quando ele estava perto da morte, pediu a João que cuidasse dela a partir daquele momento, fazendo o inverso das intenções de José e tomando a iniciativa de protegê-la. O fato é que não deixou sua mãe sozinha em uma sociedade pouco favorável às mulheres. Isso significa que, de alguma forma, mesmo distante por vezes, ele havia cuidado dela até então. João nos conta que a levou para a sua casa, assumindo, portanto, seu cuidado e proteção. Ela deveria estar na casa dos 50 anos quando isso aconteceu.

Uma coisa que aprendemos dessa história é que o ideal de família perfeita, inclusive baseada na família de Jesus, não existe e não passa de uma construção forçada por tradições patriarcais da Igreja e por evangélicos conservadores atuais que desejam impor sobre os fiéis um modelo de família que nem eles próprios conseguem praticar em seus lares, a não ser por meio de ações extremamente impositivas.

Jesus veio ao mundo! Estar no mundo e humanizar-se é, de fato, adentrar para esses meandros das relações complexas, marcadas por amor e egoísmo, doação e retenção para si. As famílias são formadas por humanos que vivem nas sociedades construídas por eles, portanto, redes, inclusive familiares, em que não há perfeição. A família de Jesus não se diferencia de muitas famílias daquela época e mesmo de nosso tempo, cheias de dilemas, preocupada em dar satisfações sociais, esconder seus problemas das lideranças religiosas que se colocavam (e se colocam até hoje) como guardiães de normas rígidas, moralidades opressoras por eles próprios construídas. Há muitas hipocrisias nessas tais construções e lares de cristãos que escondem muitas coisas. A família de Jesus era formada por um homem que quase desistiu do lar, por uma jovem que embora muito silenciosa (guardava no coração) não se ausentou da vida do filho até mesmo contrariando regras sociais da época, o próprio Jesus que parecia “sumir no mundo” em sua missão. Era uma família não muito típica, mas como muitas no mundo e na história, se esforçava por estar junta, mesmo em meio às situações complexas da vida e de sua própria humanidade.

A questão aqui não é macular a memória de José e nem mesmo desmerecer sua figura, mas também não o justificar. O esforço é por tentar retirar o filtro das tradições a que a história deve ter sido submetida e enxergar José não somente como homem do seu tempo, mas das masculinidades forjadas nos sistemas sociais históricos com os quais convivemos. Nesse vaivém da leitura, temos uma fusão de horizontes históricos e reconhecemos como Deus agiu na vida de Jesus e como Jesus se revelou para nós uma humanidade diferente, que, mais uma vez supera, vai para além da cultura e de normas sociais injustas, principalmente aquelas patriarcais, faz diferente e ensina como fazer diferente, além de um modelo de humanidade para todos e todas nós, demonstrou aspectos de homem que todo homem deveria ser, daquele que vê e age além de si próprio e de seu autocentro, que se permite amar além de si mesmo e cuidar, doar-se e marcar as vidas dos filhos e filhas, inclusive em suas memórias; e isso para nós é Palavra de Deus. Jesus não se importou em ser, humanamente, filho da sua mãe, afinal essa é a memória mais forte que por nós foi herdada.

 

Caminhos para uma Missiologia Decolonial na América Latina

 


Por Regina Fernandes

Sabemos que a história da Igreja é, sem dúvida, uma história das missões cristãs e de como o cristianismo se espalhou e se organizou no mundo, inclusive tornando o Ocidente uma região predominantemente cristã. Entretanto, a prática da missão nem sempre se deu aliada ao seu pensamento, ao menos um pensamento mais profundo acerca dela, uma teologia da missão. Esta é certamente uma das razões pelas quais o missionarismo cristão assumiu, invariavelmente, posturas impositivas e intolerantes para com outros povos, as suas culturas e suas religiões. Tendo em vista que a Teologia é uma antiga área do conhecimento, para mais de dois anos a depender do que se entende por teologia, são relativamente recentes os estudos sistemáticos acerca da missão da Igreja e de seus fundamentos. A missiologia é uma área do conhecimento teológico que surgiu no séc. XX.

A Teologia Latino-americana teve origem na própria crítica aos missionarismos estrangeiros na América Latina. A TdL realizou a crítica às missões ibéricas que vieram para nosso continente no conjunto das colonizações. A teologia evangélica, articulada principalmente (mas não exclusivamente) pela FTL, tratou de recontar a história das missões protestantes modernas a partir da experiência latino-americana. A intenção nunca foi invalidar os esforços cristãos estrangeiros, mas usar da nossa liberdade para avaliar as fragilidades desses projetos e também apontar os seus aspectos positivos, para fins de pensarmos a missão a partir das nossas realidades e dessas críticas, aprendermos com os erros e os acertos.

A TdL ouviu Bartolomeu de las Casas, ouviu historiadores e seus próprios teólogos e teólogas utilizando metodologia historiográfica própria.  A FTL, em sua teologia evangélica tem escutado as diversas vozes que procedem dos seus núcleos, dos eventos realizados e das diversas iniciativas de fazer teológico que colocam em revisão nossa experiência sócio-histórica com as missões.

Nesse esforço, é preciso reconhecer que o cristianismo latino-americano é um dos maiores do mundo, e, nele, se destaca a Igreja evangélica, principalmente por causa dos pentecostalismos. O drama dessa constatação é que esse cristianismo tão numeroso ainda não conseguiu sinalizar com clareza a sua própria identidade, que é fundamental para nossa contribuição e presença latino-americana no cristianismo global. Isso se deve ao fato de que a forma como implantaram o cristianismo em nossas terras foi civilizatória e colonizadora. Sabemos, hoje, que isso não está na natureza do cristianismo em si, mas está na natureza das origens políticas e religiosas dos projetos missionários modernos, que correspondiam acriticamente às propostas desenvolvimentistas dos novos colonialismos.

A fé cristã, em sua natureza teológica, é encarnacional. Uma obra que explica isso com muita clareza é o livro de David Bosch, Missão Transformadora, onde ele analisa os diversos paradigmas teológicos e missiológicos aos quais a fé cristã foi se adaptando ao longo da história, um dos mais radicais deles foi o helenismo nos primeiros séculos da Igreja. No processo de helenização do cristianismo a mudança foi profunda, de ordem epistemológica, os cristãos foram abandonando a mentalidade hebraica do cristianismo original e passaram a compreender a fé por outras categorias de pensamento, da filosofia neoplatônica. Também sabemos que o Humanismo e o Renascimento serviram de pano de fundo cultural para a Reforma Protestante e que ela é fruto dessa mudança de paradigma de compreensão da própria condição humana no mundo. Os racionalismos modernos e o iluminismo também demarcaram profundamente o modo de fazer teologia na Europa, nenhuma teologia foi a mesma depois deles por mais que resistam aos seus métodos. Queremos com isso comprovar que a fé cristã e sua teologia são caminhantes no tempo e nas culturas e se adaptam, inclusive para ser compreensível a elas e às diversas realidades vivenciais.

Se assim é o cristianismo, como explicar todos os impedimentos sofridos em nossa América Latina, inclusive com dizimação de populações, como aconteceu com vários povos nativos da América Latina na época das colonizações ibéricas, e em nome da religião cristã e para a sua implantação? Como explicar os controles eclesiásticos, os impedimentos teológicos, os desestímulos aos estudos dos chamados “nacionais”, o envio excessivo de obras traduzidas, a imposição de modelos eclesiásticos, de culto e de educação teológica e outras práticas que foram próprias das missões protestantes modernas em nossa região, e que resultaram em uma igreja evangélica na América Latina, mas que ainda não consegue se reconhecer latino-americana?

É em vista dessas situações que precisamos falar de colonialismos e decolonialismos. É fato que a TdL foi mais propositiva em relação a esse assunto, até mesmo devido à sua radicalidade e à sua orientação revolucionária. A FTL foi comprovadamente mais tímida em se assumir como teologia decolonial, pois para isso ela precisa admitir que tanto as missões católicas e protestantes como suas teologias foram claramente colonizadoras, ainda que também aponte os aspectos positivos delas como sempre faz em seus documentos. No âmbito da FTL é preciso ter a maturidade para entender que fazer a crítica às missões que foi o seu próprio berço não é o mesmo que desmerecer esses esforços.

Continuar a repensar a missão da Igreja e de perspectiva crítica, é urgente. É preciso considerar que a reflexão acerca da missão desenvolvida no século passado se deu com o suporte das teologias ocidentais e resultou em uma história das missões a partir das grandes empresas evangelizadoras e, invariavelmente, na perspectiva da conquista dos povos. Um outro ponto de vista dessa história precisa ser validado, ao menos por nós. Há necessidade atual de uma teologia da missão que se faça a partir dos povos conquistados, dominados, colonizados, subalternaizados de modo que eles possam contar sua própria história como campo de missão, e recorrer ao texto bíblico a partir de outras perspectivas. Uma nova compreensão da missão, com outros fundamentos, pode surgir de tais esforços. A missão a partir da América Latina precisa se fazer de outras maneiras e à luz de suas próprias teologias, de uma nova leitura bíblica, para fins de ser ação libertadora na América Latina, conforme adverte o próprio Moltmann fazendo referência ao papel da Igreja no mundo onde ela atua:

A Igreja deve refletir e representar o Reino de Cristo em primeiro lugar dentro de si mesma. A ordem de sua comunidade não pode ser adotada ou determinada pela situação de domínio e dominação da sociedade em que vive, pois ela deve corresponder a seu Senhor e representar para a sociedade uma nova vida. (MOLTMANN, 1980, p. 8)

Sobre isso, nas últimas décadas, vêm se falando principalmente no âmbito das humanidades, das novas epistemologias latino-americanas e caribenhas. Elas contemplam os vários cenários de lutas e representações sociais que propõem outros modos de saber, a partir dos múltiplos contextos da América Latina e Caribe, e nas suas ricas formas de linguagem e diversas sabedorias. Tais discussões podem ser situadas no conjunto dos debates acerca das epistemologias do sul global. Neste mesmo conjunto de discussões e em relação a eles estão também as teorias decolonias, que propõem formas de superação aos inúmeros meios de controles e dominações que incidiram e incidem sobre a América Latina pelas empresas e projetos colonizadores ao longo da história moderna, nelas, incluindo as missões.

Precisamos de uma missiologia que proponha não somente uma nova compreensão da missão, mas que contribua para uma outra forma de ser evangélico na América Latina e em todos os lugares onde está fé for levada. O que estamos dizendo é que conforme entendemos nossa missão no mundo como Igreja será a forma como nossas identidades serão construídas. Uma missão para a justiça do Reino de Deus, que provoque um entendimento mais profundo desse compromisso, certamente contribuirá para uma vivência religiosa evangélica mais pacífica, reconciliadora e restauradora da criação. Mas uma missão com um discurso e práticas bélicas e colonizadoras, certamente resultará em igrejas intolerantes e dadas a polarizações e violências.

Isso acontece porque a ideia de missão é a mesma ideia de nossa razão como cristãos e cristãs no mundo, o nosso papel dentro das diversas realidades sociais. Se assumirmos a compreensão de missão baseada no uso inicial do termo pelos jesuítas de contrarreforma, que foi o espírito em que foi empregado, como uma campanha militar, agiremos como soldados que conquistam povos, mas se nos basearmos na missão de Jesus, com a ideia de serviço e doação, esvaziando o termo de toda a sua violência histórica, seremos, de fato, comunidade testemunhal no mundo.

Uma outra missiologia, a partir da América Latina, sua cultura e da sua experiência histórica, pode contribuir para sobrepor qualquer outra teologia da missão que em partes, ou em sua totalidade, não corresponda ao evangelho encarnacional de Jesus Cristo e apresente uma prática colonizadora. O movimento de Missão Integral poderia propor essa missiologia, mas, infelizmente, a resistência interna do pessoal da missão de assumir seu caráter teológico e do pessoal da teologia em reconhecer seu potencial teológico e mesmo a sua vigência atual, dificulta no avanço de sua ordenação missiológica.

O modelo missional praticado no século XIX e XX, que deu origem as agências missionárias e envios de missionários especializados, já não atende os tempos atuais, principalmente no antigo mundo dos dois terços como denominava Orlando Costas. Além da exaustão do modelo, ele, já em sua época, apresentou problemas irrecuperáveis, que estavam na sua própria gênese e compreensão pouco aprofundada de missão, sim, devido à ausência de uma missiologia profunda, como vemos na pauta das discussões da I Conferência Missionária Mundial de Edimburgo, que priorizou a estratégia e os métodos em lugar da problematização da missão. Em Lausanne, sabemos que esse assunto da missão e seu entendimento mais amplo foi tocado de modo involuntário por sua organização, foi provocado dentro do próprio congresso por representantes, inclusive, da América Latina.

Como podemos avançar em uma prática missionária que corresponda melhor aos tempos se não a pensarmos profundamente? Se quisermos caminhar em direção à uma teologia de missão e a uma missão da teologia precisamos discutir o assunto e tratá-lo com seriedade. Para isso, precisamos assumir o caráter colonizador das missões protestantes, do próprio termo missão, o espírito de conquista que sempre está na bagagem missionária, a recorrente subestimação dos povos e grupos evangelizados tanto em sua cultura quanto em sua capacidade teológica. Precisamos sair dos lugares abissais em que a teologia ocidental nos coloca, como aquela parte do mundo em que as teologias devem ficar escondidas sob os nomes de étnicas, exóticas, específicas, e emergir, ainda que seja para nossos próprios mares, nos situando em lugares de visibilidades. Isso ninguém fará por nós, somos nós mesmos que temos que fazer, que em nossas próprias libertações, nos permitamos des-esconder, des-impedir nossas sabedorias, nossas teologias, nossas vozes. Somente nessa nova postura construiremos uma missiologia libertadora, integradora, propositalmente decolonial.

  Povo de “dura cerviz”! Regina Fernandes   Ainda ressoam as vozes dos seus profetas, eles não se calam, ao povo que não era povo, q...