Regina Fernandes[1]
Os povos latino-americanos têm convivido com diversas formas de governo, desde sistemas totalitários de poder ou de extrema direita à esquerda radical. A Igreja, em suas confessionalidades predominantes, protestantismo e catolicismo, tem se posicionado e até atuado junto à essas formas de governo, por vezes como agente crítica e profética, por vezes como aliada e validadora religiosa de tais sistemas. O tema da relação entre Igreja e Estado é extremamente controverso desde o início da instituição eclesiástica, que podemos situar por volta do séc. II.
Recorremos,
nesse texto, ao teólogo Karl Barth como ajuda para pensarmos essa relação entre
Igreja e Estado. Antes, buscamos na teologia bíblica alguma orientação sobre o
assunto. Encontramos algumas luzes na experiência de Israel no Egito, que, nas
origens de sua constituição como povo de Deus, teve que enfrentar uma relação
difícil com os governantes egípcios de exploração e abuso. Uma das histórias da
época é das parteiras das hebreias e a ordenança que elas matassem todos os
meninos nascidos em suas mãos e deixassem viver as meninas (Êx. 1.15-17).
Zabatiero comenta que os meninos eram vistos como ameaças de subversão contra o
Império, enquanto as meninas poderiam ser úteis nos haréns e em outras tarefas.
Para tais governantes mulheres não eram ameaças. A narrativa é uma daquelas
ironias que a Bíblia relata, pois foram justamente as mulheres, parteiras e
gestantes, aparentemente servis e frágeis, que mudaram o curso daquela
história. Elas “temeram a Deus e não obedeceram às ordens do rei do Egito;
deixaram viver os meninos.” (Êx 1:17). Mentiram para não serem castigadas pela
desobediência: “Responderam as parteiras do faraó: "As mulheres hebreias
não são como as egípcias. São cheias de vigor e dão à luz antes de chegarem as
parteiras".” (Êx 1:19):
De parteiras e
gestantes! Estória de parteiras gestantes. Estranho sexo frágil. As mulheres
hebreias, diziam, eram mais fortes que as egípcias. Subnutridas, exploradas, utilizadas
como mão-de-obra barata. Mais fortes que as bem nutridas mulheres egípcias.
Mentira das parteiras!? Mulheres hebreias, gestantes frágeis na dor, fortes na
astúcia, na defesa da vida de seus filhos ameaçados pelo Império. (ZABATIERO,1993, p.
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O
redator bíblico relata que por causa dessas atitudes “Deus foi bondoso” com as
parteiras, fez crescer o povo e abençoou as suas famílias. (Êx 1. 21). Essa bela
história, em tons etiológicos, explica a sobrevivência de Moisés e do próprio
povo de Israel.
Em
uma comparação um tanto anacrônica, podemos afirmar que aquelas mulheres foram
mais corajosas e conscientes humanamente do que, por exemplo, Adolf Eichmann, político-militar
e um dos organizadores do holocausto, que se colocou em plena sujeição ao des-humano
governo nazista, no qual milhões de judeus assassinados. Eichmann alegou em seu
julgamento que somente obedeceu às ordens de seus superiores, portanto, não era
responsável por aquelas mortes. Importante lembrar que se tratava de um Estado
cristão, conhecedor das tradições cristãs e das Escrituras. Aquele militar se
portou como um autômato programado para obedecer a ordens e não pensar acerca
delas. Ao fazer isso, rejeitou sua condição humana da liberdade de decidir por
meio da consciência. Isso, certamente, não o tornou menos culpado pela morte
daquelas pessoas, pois usou da liberdade da decisão humana para decidir não decidir.
As parteiras agiram de modo diferente, como humanas, além de decidirem pela
liberdade de consciência, decidiram pela vontade de Deus, a quem temiam.
Demonstraram coragem de questionar o sistema despótico em que viviam, e não se
aliaram a ele na destruição da vida.
É
dessa perspectiva que ouvimos Karl Barth, que, na mesma situação histórica da Segunda
Guerra mundial de Eichmann, decidiu não compactuar com o sistema nazista, como
o fizeram diversos líderes cristãos. Ainda, teologizou a partir dessa
experiência, pois, como teólogo e pastor, precisava compreender mais
profundamente o papel da Igreja naquele contexto social e político terrível.
Barth
explica que a Igreja está organizada no mundo na forma de comunidades cristãs,
e o Estado é o que chama de comunidade civil. A comunidade cristã, por estar no
mundo e fazer parte de sociedades, está subordinada à comunidade civil, mas adverte:
“segundo o critério do seu conhecimento do Senhor, que é Senhor sobre todas as
coisas, e distinguindo “por causa da consciência”, na área das possibilidades
exteriores, relativas e provisórias desse círculo externo!”. Com base nesses
critérios ela é capaz de discernir entre
...o Estado legítimo e
o não-legítimo, isto é, entre formas e realidades políticas que se apresentam
melhores ou piores, entre ordem e arbítrio, hegemonia e tirania, liberdade e
anarquia, comunhão e coletivismo, entre direito da personalidade e
individualismo, entre o Estado de Romanos 13 e o de Apocalipse 13. (2006, p.
297-298).
Para ele, cabe à comunidade cristã
julgar os casos e as situações de seu contexto, todavia, pensando não somente
no seu próprio bem, mas no bem comum. Sob tais critérios, principalmente
aqueles de ordem teológica, é responsabilidade dela (e de todo cristão e
cristã)
...de caso para caso,
em cada situação específica, quererá e optará pelo Estado legítimo, isto é,
pelo Estado melhor em cada caso, e deixará de querer e optar pelo Estado que
não seja legítimo, isto é, pelo Estado que não seja pior em cada caso. E
segundo esta opção e esta vontade, ora ela se empenhará, ora se oporá. (2006,
p. 297-298).
Barth compreende a Igreja como a
congregação dos cristãos, situada em algum tempo e lugar em torno da Palavra de
Deus, para fins do testemunho de Jesus Cristo. A comunidade civil, reúne em
convívio todas as pessoas de um lugar e tempo, sob uma ordem de direito que
seja válida e obrigatória para todos (as), para fins da “liberdade exterior,
relativa e provisória do indivíduo quanto a paz exterior, relativa e provisória
da comunidade, e concomitante em garantir o caráter humano de sua vida e do seu
convívio, também em termos exteriores, relativos e provisórios.”. Afirma ainda
que isso é garantido pela: “legislação, que fixa a ordem de direito válida para
todos, pelo governo e administração, nos quais ela é aplicada na prática, e
pelo judiciário, que decide sobre o seu alcance em cada caso.”. (2006, p.
297-298)
Com isso, o teólogo de Basileia
deixa claro que existe uma distinção fundamental entre Igreja e Estado e
critérios de relação e obediência que envolvem a ambos. Foi, certamente, baseado
em tais critérios que ele se opôs ao nazismo e à Igreja estatal de sua época,
mesmo com a consequência de ser expulso da Alemanha. Dietrich Bonhoeffer não teve
essa mesma sorte, mas foi morto pelos nazistas por sua “insubmissão” ao Estado,
por causa de sua luta pela vida e denúncia das políticas de morte.
Aprendemos
com Barth e, de modo um tanto anacrônico, com as parteiras no Egito, que Igreja
não é aquela que se afirma igreja, mas aquela que se mostra igreja, que busca
discernir a vontade de Deus nos tempos e realizá-la nas suas relações no mundo.
O papel da Igreja e dos cristãos que a formam é de luta pela vida e sempre
contra todas as formas, expressões e situações em que ela, em menor ou maior
grau, estiver comprometida. Todas as demais obediências e sujeições devem a
esse critério teológico fundamental. Não é em vão que, na teologia bíblica, a
história que fundamenta originariamente nossa fé é a história da criação e do
surgimento da vida. Toda teologia bíblica nos coloca em relação diretamente com
ela.
Na
América Latina, em que a vida é comprometida todos os dias, de diversas formas,
entre elas, através de políticas perversas e ausência de políticas justas, cabe
à Igreja compreender, teologicamente, qual é o seu papel como comunidade cristã
e decidir como agir em prol da vida orientada pela justiça do Reino de Deus.
Bibliografia
BARTH,
Karl. Dádiva e Louvor. São Leopoldo: Sinodal, 2006.
SANCHES,
Elissa Gabriela Fernandes. Amor e Ação no Mundo. Campinas: Saber Criativo, 2019.
ZABATIERO,
Julio Paulo Tavares. De Gestantes e Parteiras.
In.: BT – Boletim Teológico FTL-Brasil. Ano 7, nº 21, julho-dezembro
1993.
[1]
Teóloga, Presidente da FTL, Mestre em Teologia e Práxis, Mestre em Missiologia,
coordenadora editorial da Editora Saber Criativo.
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