Regina
Fernandes
Em
várias partes de América Latina grupos que se intitulam evangélicos, de corte
fundamentalista, se aliaram a governos e movimentos de extrema-direita. Tais evangélicos
apresentam como principais características a perseguição sistemática ao que
consideram como expressões e representações da esquerda política, sob o velho
discurso da guerra fria; o negacionismo em relação à pandemia; a defesa do
armamento civil; a busca pela ocupação de espaços de poder governamental, para
fins de instalação de formas de cristandade; o discurso de prosperidade como ideologia
religiosa; a identificação com o neoliberalismo econômico e o capitalismo que
ele propõe; ações inquisitórias em relação ao que consideram como liberalismo
religioso; espalhamento de fake news como estratégia de indução das
massas etc. Também são marcadamente homofóbicos, defensores de supremacias
brancas, machistas e mediadores de imperialismos.
Recorrência
Histórica
De
fato, essa não é uma novidade atual, pois na história sempre houve pessoas e
grupos evangélicos se aliando a sistemas de poder na América Latina, como
aconteceu na época das ditaduras militares, com as perseguições sistemáticas a
todos e tudo o que era taxado de esquerda política, o que incluía teologias,
teólogos e teólogas. Sob o discurso de purificação teológica e institucional líderes
fundamentalistas entregaram aos militares e à tortura aqueles e aquelas que propunham
teologias diferentes das suas. Rubem Alves relata na introdução da obra Da
Esperança sua própria experiência com esses grupos inquisidores na época da
ditadura militar no Brasil, quando ele precisou sair forçadamente do país para
um doutorado não programado nos EUA, após “colegas evangélicos” de ministério o
denunciarem aos militares como sendo comunista. Ele descreve a ação perversa
dessas pessoas como tendo um sentido malignamente religioso, como sendo um
sacrifício a Deus, de zelo cristão, entregar pessoas para a morte ou para o
sofrimento. Trata-se, na realidade, de discursos que visam dar legitimidade
religiosa para ações anticristãs e biblicamente reprováveis.
Sabemos
que o cristianismo sempre teve grupos e expressões internas aliadas a sistemas
perversos de poder, comprometendo o próprio nome da religião. De fato,
apresentar-se como cristão no mundo pode remeter a uma série de significados,
e, muitos deles não positivos e de bom testemunho. O mesmo podemos dizer em
relação ao protestantismo desde suas origens.
Em
nossa família vivenciamos experiências difíceis no cristianismo evangélico na
‘própria pele.’ Na década de 90, embora já findado o regime militar no Brasil, mas
não as influências teológicas fundamentalistas e de inquisição, um pastor da Convenção
Batista Nacional, instituição evangélica da qual participávamos, que morou
muito tempo nos EUA e havia regressado para o Brasil, iniciou uma campanha
declarada de perseguição às pessoas da denominação que manifestassem qualquer
tipo de propensão, ensino ou menção da crítica bíblica, pois ele próprio se
declarava como “caçador de cabeça de liberais”. Em 1995 fomos expulsos do
seminário da denominação em Minas Gerais (STEB), onde morávamos com nossa
família, juntamente com o pastor, doutor em Antigo Testamento e diretor do seminário na época e sua família, por termos sido
taxados de liberais. A razão era que nas aulas de Antigo Testamento nosso amigo doutor do AT e de Novo Testamento ministradas por Sidney, mencionavam e estudavam os
métodos críticos entre os métodos de estudos bíblicos desenvolvidos na história.
O Conselho do Seminário na época demitiu os dois professores, deram às famílias
o prazo de pouco mais de um mês para deixarem as residências. Tínhamos duas
filhas, uma de 2 anos e a outra de seis anos naquela década. Nos deram como
acerto salarial o valor correspondente (atualmente) a dois salários-mínimos.
Fizeram
do evento de comunicação das medidas que seriam tomadas uma cena épica.
Estávamos em aulas naquele dia e fomos chamados à capela do seminário em que a
maioria dos estudantes eram internos. Na época, eu ainda cursava teologia. Em
torno de onze pastores entraram pelo portão central do seminário como que
marchando. O presidente da denominação se posicionou à frente na capela e os
demais pastores fizeram um semicírculo à sua frente, para protegê-lo daqueles
“ferozes seminaristas”. Com semblantes fechados e impositivos informaram que
fariam uma limpeza de tudo o que havia sido ensinado, construído e realizado
nos três anos que os dois dirigentes estiveram na instituição. Entre as ações
de “limpeza” que o novo grupo que assumiu realizou esteve a queima de livros no
seminário e a retirada da Biblioteca de obras consideradas liberais. Nos anos
seguintes encontramos livros com o carimbo da biblioteca em sebos da cidade de
Belo Horizonte. Coincidentemente, parte daqueles que participaram desse evento inquisitório
assumiram também a diretoria, coordenação e cargos docentes no referido
seminário. A instituição, entretanto, não suportou o desmanche, o desgoverno e
a ausência de teologia daqueles pastores, e, depois de alguns anos, foi fechada
e seu campus vendido para pagamento de dívidas realizadas nesse período da dita
“purificação” institucional.
Se
buscarmos nas influências históricas precursoras desses movimentos evangélicos encontraremos
o puritanismo norte-americano que chegou à América Latina na bagagem teológica
do missionarismo protestante, também encontraremos as intolerâncias do
movimento fundamentalista com origem no início do século passado. Mas não
podemos deixar de considerar nossa própria genética latino-americana e
tendência para brigas pelo poder, nesse caso, sob bases ideológicas e
teológicas vindas de fora.
Historicamente,
esses grupos podem ser identificados no conjunto do movimento evangélico, pois também
possuem suas raízes tanto na Reforma Protestante quanto nos avivamentos
religiosos do séc. 18, que foi gerador de uma série de outros movimentos, como
o metodismo e o evangelicalismo (de envolvimentos sociais), posteriormente, o
pentecostalismo e o fundamentalismo. Podemos dizer que o protestantismo e seus
movimentos geraram muitos filhos e com personalidades diversas. É um equívoco,
até uma inocência, afirmar que tudo o que surgiu no interior do protestantismo
é de fato bom.
Miguez
Bonino explica o termo evangélico “em sua acepção anglo-saxã” e originária,
como referente àqueles que afirmam confiança irrestrita na Bíblia, pregação da
salvação em Jesus Cristo inclusive como caminho para a santidade da vida no
mundo. (BONINO, 2013, p. 29). Esse movimento, que foi teológico, pois partiu de
concepções teológicas, gerou em sua época de surgimento esforços evangelizadores
e de envio de missionários para várias partes do mundo, espalhando os ensinos
evangélicos que serviram de base para as novas igrejas fundadas nos diversos
campos missionários principalmente na Ásia, África e América Latina. Das
missões estadunidenses herdamos também o denominacionalismo e o fundamentalismo
teológico sectário e divisionista.
O
chamado protestantismo de missão foi, caracteristicamente, um movimento
evangélico, no sentido histórico do termo. Ainda que tenha apresentado ações de
preocupação social, geradoras de várias instituições educacionais, hospitais,
editoras etc., sabemos que a maioria delas foram marcadamente
desenvolvimentistas, portanto, priorizando o atendimento de elites que poderiam
contribuir para o desenvolvimento econômico e político da região.
O
termo evangélico surgiu associado a um movimento no período moderno referente à
prática da evangelização, com um sentido pejorativo daqueles que a realizavam. Essa
evangelização, como ampla pregação, estava associada a mudanças sociais, como se
verificou no metodismo que nasceu no seio desse movimento, todavia, era também
fruto de sua época, e, no esforço da evangelização, houve associação (aliamento)
a projetos expansionistas, imperialistas e colonialistas de muitas nações.
Renovação
Evangélica
Na
América Latina, surgiu em meados do século passado uma nova forma de ser
evangélico, que Miguez Bonino chamou de “renovação evangélica”. Esse movimento
que ele associa à Fraternidade Teológica Latino-americana, descreve como:
Resgata-se e
recupera-se uma tradição evangélica, particularmente ligada ao movimento
anabatista dos séculos 16 e 17 e ao despertar do séc. 18 na Inglaterra e nos
Estados Unidos [...] tanto na tradição reformada quanto na wesleyana, mas
também às origens de nosso próprio protestantismo missionário na América
Latina. Os trabalhos de Escobar, Arana e Padilla nos mostram, ao mesmo tempo,
que não se trata de uma mera reinvindicação de uma tradição, e sim de buscar
nela elementos que fecundem uma reflexão teológica e uma prática evangélica
para a América Latina hoje. (BONINO, 2013, P. 46)
Ele
ainda esclarece que o movimento da FTL teve início com a “afirmação da
centralidade das Escrituras”, em resposta às hermenêuticas literalistas do
fundamentalismo e aos reducionismos do liberalismo teológico, resultando em esforços
hermenêutico-exegéticos significativos. Outro tema que está nas origens do
movimento é o da cultura e da contextualização, conforme Bonino menciona: “Em
Lausanne (1974), René Padilla rejeita a identificação da fé evangélica com o American
way of life.”, defendendo, assim, o caráter encarnacional da palavra de
Deus. Os aspectos “dos elementos estruturais – políticos, econômicos, sociais”
latino-americanos também fizeram parte importante da pauta teológica desse
evangelicalismo de renovação, não simplesmente como temas a serem tratados, mas
como realidade a partir da qual se faria teologia. Ainda acrescenta que não
faltou a esse movimento o espírito ecumênico necessário para que realmente
fosse renovador.
Outros
pensadores do protestantismo evangélico latino-americano chamaram essa forma de
evangelicalismo, na qual se situa a FTL, de evangelicalismo radical. Entre essas
pessoas está o bispo já falecido Robinson Cavalcanti, um de seus fundadores no
Brasil.
Dentre os diversos
grupos evangelicais destaca-se o que Quebedeaux chamou de “evangelicais
radicais”. Este é particularmente interessante, porque embora tenha sua raiz
remota no movimento de revitalização no anglicanismo britânico do século XVIII,
que teve como representantes destacados nomes como o líder abolicionista William
Wilbeforce, é um movimento que ganhou elaboração teórica e atuação pastoral na
América Latina: o evangelicalismo radical latino-americano. O diferencial do
movimento evangelical latino-americano, conforme Mark Ellingsen, está no fato
que “os evangelicais radicais abraçam, talvez mais intensamente que outros, um
compromisso [...] de que a ética sociocristã deve estar enraizada no testemunho
bíblico e num estilo de vida regenerado”.
O
texto ainda acrescenta: “Como se vê, a palavra evangélico tem uma história rica
de significado. Evangélico evidentemente tem a ver com a boa notícia de Deus em
Cristo Jesus.”, e menciona o teólogo alemão Karl Barth que a utilizou no título
de uma de suas obras: Introdução à Teologia Evangélica.
Bonino conclui sua exposição sobre o
que ele chamou de “rosto liberal” do protestantismo com a pergunta: “não seria
também aqui necessário reclamar nossa identidade evangélica, examiná-la
criticamente e procurar superá-la positivamente?” (BONINO, 2013, P. 47). Essa é
uma pergunta que ainda faz sentido para nós hoje, pois o nome “evangélico” traz
consigo uma herança histórico-teológica que vai além do próprio movimento em
que ele começou a ser utilizado para um movimento mais específico, mas diz
respeito às bases de nossa fé cristã. Ainda que, atualmente, o nome venha sendo
usado para se referir a grupos aliados à sistemas religiosos e governos que são
reconhecidamente comprometedores da vida, não se pode abandonar tudo o que ele
representa em seu sentido correto e bom. Isso também se aplica ao cristianismo,
nome de uma religião tão comprometido por experiências históricas tragicamente
danosas, e o próprio protestantismo, que se tornou uma espécie de guarda-chuva
onde se abrigam expressões religiosas boas e outras nem tão boas.
Não se trata de mudar o nome de
evangélico ou deixar de usá-lo por causa das associações atuais a que ele vem
sendo submetido, pois isso seria também abrir mão de toda a herança que ele
carrega. No Brasil, o atual movimento de extrema-direita cooptou para sua
propaganda um dos principais símbolos nacionais, a bandeira brasileira, mas, como
abrir mão desse símbolo por ela estar sendo usada como ícone de um programa
maléfico de governo e de campanha política? Afirmar-se como evangélico e, a
partir dessa localização, colocar-se em disposição de diálogo ecumênico com
outras expressões cristãs que também lutam pela vida, é favorecer a comunhão
cristã e não entregar facilmente algo próprio de nossa identidade a grupos que o
transformam em utilitário para suas investidas ideológicas, sem ao menos
conhecer seus significados.
A identificação como evangélicos
progressistas, evangélicos radicais, evangélicos latino-americanos e outros
termos faz parte desse processo de renovação identitária, necessário de ser
sempre realizado à luz das novas questões colocadas pelo contexto e da tradição
cristã que ele representa. No movimento da FTL a identificação como evangélica
é um dos aspectos que a torna distinta, histórica e teologicamente, do
movimento da Teologia da Libertação. Tais distinções são importantes não para
gerar divisões ou intolerâncias, mas para reconhecermos as ricas contribuições
de cada movimento e suas teologias, principalmente, no esforço do diálogo
ecumênico.
Bibliografia
BONINO,
José Miguez. Rostos do Protestantismo Latino-americano. São Leopoldo:
Sinodal/EST, 2013.
FERNANDES,
Regina. Introdução às Teologias Latino-americanas. Campinas: Saber Criativo,
2019.
MENDONÇA,
Antonio Gouvêa. Protestantes, Pentecostais & Ecumênicos. São Paulo:
Universidade Metodista, 2008.
UNISINOS.
Um ministro "terrivelmente evangélico" no STF?. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591406-um-ministro-terrivelmente-evangelico-no-stf.
Acesso em 14/06/2021.