Já
há consenso, principalmente no meio acadêmico, da importância dos saberes milenares
dos povos originários da América Latina, que ensinam um modo de se relacionar
com o mundo marcado pelo bem-viver. Seus modos de vida integrados com a
natureza e em relação harmônica com ela, as formas comunitárias de organização
social, a relação com o corpo e outros elementos de sua cultura evidenciam que
temos muito a aprender com eles sobre a vida.
Esses
povos foram invadidos pela “civilização” ocidental que se entendia com um modo
de vida superior ao deles, portanto, com o projeto de “civilizá-los”. No
Brasil, os povos indígenas foram massacrados e dizimados, não somente em suas
culturas, mas suas populações. Estima-se que havia em torno de 3 a 4 milhões de
indígenas no Brasil na época das invasões ibéricas, em 1988 o Censo brasileiro
identificou o número de 302.888 indígenas no país, certamente, não considerando
descendentes de indígenas espalhados em centros urbanos que não se declaram nos
censos como indígenas por medo de violências. Uma das estratégias utilizadas
por grupos indígenas no Brasil foi de se misturar às populações não-indígenas,
inclusive por meio de casamentos, para sobreviver aos ataques. Por essa mesma
razão, para não serem reconhecidos, muitos abandonaram as línguas nativas, resultando
na extinção de algumas delas. Hoje não sabemos ao certo o número de indígenas
dispersos nos centros urbanos, mas sabemos que a maior parte dos brasileiros e
brasileiras possuem origens genéticas indígenas. É comum em nossas genealogias
não encontrarmos sobrenomes de nossas avós, pois muitos de nós somos
descendentes de “mulheres capturadas a laço nas matas”, ou seja, descendentes
de violências contra mulheres.
No
Brasil, as culturas dos povos originários foram chamadas de selvagem,
primitivas, inumanas, e, posteriormente, no mundo acadêmico, de exóticas, étnicas,
tradicionais, sempre em comparação à cultura europeia chamada de “clássica”. Ora,
sabemos que aquilo que é clássico é visto como perene e universal. O que é
exótico é “fora de lugar”, excêntrico; o étnico se refere a um grupo
específico. Nos parece que somente estamos usando novas palavras para o antigo
comportamento de exclusão e dominação, mas agora sob o refinamento do
vocabulário acadêmico.
É
um fato e não uma especulação que o cristianismo chegou aos grupos indígenas de
maneiras impositivas, inclusive o cristianismo protestante. Até hoje no Brasil
os povos indígenas são tratados como alvo das missões evangelizadoras, em uma
relação completamente vertical. São, na maioria das vezes, impedidos de criar
suas próprias igrejas e projetos de educação teológica. Há no Brasil, inclusive
no meio evangélico, uma prática de paternalização dominadora dos povos
indígenas, inclusive no âmbito das missões evangélicas, que impedem sua
autonomia. Há, todavia, esforços de resistência, como a I Igreja Evangélica
Indígena Pataxó situada na cidade de Carmésia, MG, organizada e pastoreada pelo
Pr. Izaías Hitohá Pataxó, em meio a muita oposição por parte de denominações e
grupos evangélicos. Essa Igreja indígena tem suas origens em um projeto
acadêmico de estágio em ministério integral de um curso de Teologia na cidade
de Belo Horizonte. Por influência desse projeto iniciamos também o Seminário
Teológico Indígena Terena, em uma aldeia em Miranda, Mato Grosso do Sul, com a
finalidade de ser um espaço de educação teológica indígena, organizado e
conduzido por eles. Infelizmente o projeto foi pouco tempo depois assumido por
missionários não-indígenas e não seguiu com o projeto original.
Lembrando
a vocês que falo aqui desde a experiência de Brasil, a partir desse breve
panorama podemos então tratar do assunto proposto na pergunta: “De que maneira
as instituições teológicas podem ser fertilizadas pelos conhecimentos, as
pedagogias e metodologias indígenas?
Primeiro
-
é necessário que as sabedorias indígenas sejam libertas de seu “não lugar” epistemológico
e sejam reconhecidas como saberes válidos e importantes para a construção do
mundo. Ela necessita se apresentar, como afirma Boaventura de Souza Santos,
como uma epistemologia pós-abissal, do sul global, e uma “ecologia de saberes”.
(SANTOS, 2009, p. 45). Para que as instituições teológicas se permitam
fertilizar por quaisquer outros saberes necessitam superar a ideia de hegemonia
do conhecimento ocidental, suas ciências e teologias, e conceber a existência
de múltiplos saberes no mundo, entre eles, dos povos indígenas. Todavia, ainda é
mais complicado, pois para isso será necessário conceber como válidas as formas
diversificadas de construção, registro e comunicação desses saberes, como
aponta a pergunta: “as pedagogias e metodologias”.
É
fundamental reconhecermos que os conhecimentos indígenas se fazem de outras
maneiras, e que seus métodos são tão legítimos quanto outros que têm sido
utilizados em nossas instituições. Não se trata simplesmente de aplicar
aspectos do pensamento indígena aos métodos exegéticos ocidentais para a
leitura da Bíblia, mas de reconhecer como na espiritualidade indígena se trata
o livro sagrado e as narrativas bíblicas, como percebem a palavra de Deus a
partir de seus próprios pontos de vista e como a experienciam em suas
realidades de vida. Não há ecologia de saberes sem ecologia hermenêutica.
Segundo – afirmamos em nosso
taller neste programa que as culturas indígenas se identificam em vários
aspectos com a cultura hebraica antiga, principalmente nos aspectos da oralidade
e da sabedoria. Mais do que estilos literários presentes em toda a Bíblia, são modos
de construção e comunicação do conhecimento. Jesus Cristo comunicou oralmente
seus ensinos, foram seus discípulos que realizaram os registros de seus
ensinamentos. De igual forma, ele foi reconhecido como um sábio, pois utilizou
a forma da sabedoria para pensar e falar sobre Deus. As culturas indígenas como
culturas orais e de saberes ancestrais são, sem dúvida, mais adequadas para
compreenderem nas narrativas bíblicas, desde que lidas nessas perspectivas. Os
métodos exegéticos ocidentais conseguem aproximações ao sentido bíblico, mas
são demasiadamente científicos e sistemáticos para alcançar todo o significado
vivencial dos escritos bíblicos. Certamente a leitura bíblica indígena pode
trazer uma imensurável contribuição para o entendimento bíblico.
Terceiro
-
Os povos indígenas latino-americanos não são mais campo das missões ocidentais,
ao menos não no modelo do missionarismo moderno. Isso é um fato. Não se pode
mais aceitar a interferência paternalista missionária entre os grupos
indígenas. A única relação possível é de amizade, fraternidade, parceria e compartilhamento
de sabedorias. Não se concebe mais a educação teológica que busca conhecer
elementos da cultura indígena para que os use estrategicamente para a
evangelização. Sem disposição para uma nova missiologia não há possibilidade de
fertilização pelas sabedorias dos povos originários e suas cosmovivências.
As missões cristãs, nas suas
diversas expressões, foram tanto movimentos de evangelização como de conquista de
povos e suas culturas. Pretenderam ser uma realização moderna da apostolicidade
da Igreja, mas, ao mesmo tempo, se aliaram e representaram impérios e suas
políticas expansionistas. O termo “missões”, que começou a ser usado pelos
Jesuítas na Contra-reforma para a cristianização dos povos não-cristãos,
carregou historicamente seu sentido bélico das origens. Infelizmente é um termo
e uma prática viciada. Devido à isso que na América Latina se colocou em
revisão a ideia de “Missão”, visando sua libertação de toda carga dominadora
que representou na história dos povos.
Não há dúvida de que a Igreja do
Senhor Jesus Cristo está enviada ao mundo para testemunhar sua obra amorosa e
libertadora. De igual forma a Igreja indígena nas suas mais diversas formas de
se organizar é enviada para compartilhar suas espiritualidades. Não se trata de
um envio especial ou esporádico, mas de um “estado de envio”, que caracteriza a
própria natureza da Igreja. Não somos enviados como Igreja para dominar e
destruir culturas, mas para testemunhar Cristo e compartilhar nossas
experiências humanas de busca de Deus. As teologias devem nascer desses
encontros de partilha, pois é saber da fé que nasce nos espaços humanos.
Quarto
- é complicado falarmos de espiritualidade em relação à sistemas holísticos de
vida, como são as cosmovivências indígenas, pois parece que estamos compartimentando
a realidade, da mesma maneira das culturas ocidentais, onde a espiritualidade é
um elemento da vida e não envolve, necessariamente, sua totalidade. No contexto
bíblico o Espírito Santo, como Ruah e Pneuma divino, interpenetrava a vida
dando a ela a energia para a sua sustentação no mundo. Conforme Jó “O Espírito
de Deus me fez; o sopro do Todo-poderoso me dá vida.” (Jó 33:4). O Espírito
Santo na Bíblia é o Espírito de vida, como explica Orlando Costas em seu seu no
Boletim Teológico da FTL: “Espírito de Vida”. A teologia ocidental necessita da
teologia indígena do Espírito Santo, para ver nele mais do que uma pessoa, mas
uma força que opera no mundo gerando e sustentando a vida. Como explica meu
amigo Pr. Izaías Pataxó, o Espírito é a força do Awê, termo indígena para a
alegria da comunhão da vida. Se aplicarmos as teorias epistemológicas de
Boaventura Santos, não são novas pneumatologias, pois esse é o nome das
teologias sistematizadas sobre o Espírito Santo, mas um saber sobre o Espírito
da Vida.
Certamente
há muitos pontos interessantes que marcam as contribuições dos conhecimentos e
metodologias indígenas para a educação teológica. É certo, entretanto, que não
podemos mais falar de Teologia Latino-americana sem que se considere sua
pluralidade e, nela, o lugar dos saberes indígenas e suas diferentes maneiras
de se construir e comunicar.
Regina
Fernandes
COSTAS, Orlando E. A vida
no Espírito. Boletim Teológico. São Paulo: FTL– Setor Brasil, n. 10, dez.1989.
CUNHA, Carlos Alberto. Encontros
Decoloniais entre o Bem-viver e o Reino de Deus. Campinas: Saber Criativo,
2019.
FERNANDES, Regina.
Introdução às Teologias latino-americanas. Campinas:
Saber Criativo, 2019.
PATAXÓ, Izaías. A Missão
que Brota da Terra. Campinas: Saber Criativo, 2021.
SANTOS, Boaventura de
Souza; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina,
2009.