sábado, 18 de setembro de 2021

O Desenvolvimento Sustentável à luz da Bíblia (ou nossa fé cristã)

 


"A Agenda 2030 é a nossa Declaração Global de Interdependência."

 

Regina Fernandes

 

Os 17 ODS foram apresentados pela ONU como modo de cumprimento da Agenda 2030. Eles dizem respeito não somente aos interesses de um órgão internacional, mas a todos os humanos que compartilham da vida no planeta e fazem parte da sociedade global. Cada segmento desta grande sociedade e povos que a integram estão responsáveis pela consecução e sucesso de tais objetivos. O caráter de interdependência da Agenda 2030 refere-se também a este esforço humano e político conjunto, depende do engajamento de países, comunidades e segmentos sociais para que as ações cumpram os efeitos integradores propostos nos objetivos de transformação do nosso mundo.

Nós cristãos, que afirmamos a fé evangélica, também estamos responsáveis, no espírito da missão cristã, por contribuir para a efetivação de tais objetivos visando a construção de um mundo melhor para todos. Trata-se da esperança cristã em realização no tempo histórico, até que possamos nos alegrar com sua consumação. Esta esperança, que nos leva a missionar na realidade presente, como apontou o Pr. Orlando Costas “Falar de esperança para um novo mundo sem envolver-se em formas concretas de fazer dele um lugar melhor para viver é negar a própria esperança”[1], encontra seus fundamentos na vontade última do Criador, do bem-viver harmônico de sua criação, revelada em seus atos criadores.

Esta vontade divina de um mundo bom é atuante nele por meio do Espírito Santo. É possível dizer que ela também está, de alguma forma, no coração humano, capaz de corresponder a ela por meio da proposição e esforços diversos, inclusive, de realização de objetivos de sustentabilidade. O discernimento teológico nos leva a compreender que todo esforço real pela restauração e preservação da vida está em sintonia com as ações vivificadoras do Espírito, pois ele é a única fonte de vida no mundo criado por Deus, como afirmou Jó (33.4): “O Espírito de Deus me fez, e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida.” – Com isso, acreditamos que a morte, em sentido amplo, e tudo o que a provoca ou dela resulta, não é a vontade divina para a sua criação, mas uma consequência da alienação dela. Portanto, toda ação anti-vida é também contra a vontade de Deus. Assim sendo, nossa luta missional é contra tudo o que envolve o espectro da morte e a favor de tudo o que promove a vida. Trata-se de uma missão abrangente, abarcadora de toda a realidade que faz parte do interesse de Deus.

Cooperar com ações globais, regionais ou das comunidades locais na luta pela vida faz parte da missão da Igreja, tanto quanto protagonizar tais ações. São sinais do Reino de Deus expressos na realidade presente e em um mundo carente de ver o amor prevalecer perante o egoísmo. Sabemos, pelo evangelho de Jesus Cristo, que o amor é a própria definição do reinado divino, e, também, o deve ser da Igreja. Como comunidade apostólica ela está chamada a demonstrar esse amor como sinal do Reino divino, em sua missão no mundo. 

É a partir dessa compreensão que nos voltamos para as Escrituras e verificamos as bases fundamentais para nossa ação missional em relação aos ODS. Aqui comentamos os 10 primeiros:

1 - Disse um sábio há muito tempo atrás em oração: “não me dês nem a pobreza nem a riqueza: dá-me só o pão que me é necessário; para que eu de farto não te negue, e diga: Quem é o Senhor? ou, empobrecendo, não venha a furtar, e profane o nome de Deus. (Provérbios 30:8-10). Jesus, retomando as palavras desse antigo sábio, ensinou a orar: “o pão nosso de cada dia nos dá hoje” (Mateus 6:11). A pobreza não faz parte dos planos de Deus para a sua criação, e nem mesmo a riqueza. Ninguém deveria ter de menos e nem demais. A erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões passa, necessariamente, pela distribuição equitativa da riqueza do mundo. Missionar, portanto, é lutar pela erradicação da pobreza e contra a acumulação de riquezas.

2 - Conforme os textos da criação, a humanidade foi criada para usufruir da terra e cuidar dela: “Disse Deus: "Eis que lhes dou todas as plantas que nascem em toda a terra e produzem sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão de alimento para vocês.” (Gênesis 1:29). Humanidade e terra foram criadas em relação de interdependência e cuidado mútuo. O ser humano cuida da terra e ela provê o alimento. Isso implica que a pobreza, a carência, a fome, a falta de lugar para habitar e de onde retirar o alimento não fazem parte dos propósitos originais do Criador. A terra foi dada para todos em todos os tempos. Combater a fome e suas consequências é cooperar com o agir do Espírito Santo no mundo em prol da vida. A ordem de Jesus aos discípulos de alimentar a multidão no episódio da multiplicação dos pães foi fruto de sua íntima compaixão: "Tenho compaixão desta multidão; já faz três dias que eles estão comigo e nada têm para comer.” (Marcos 8:2). Ela ainda ecoa e é orientadora de uma missão que deve abranger todos os aspectos da vida.

3 - Jesus e os seus discípulos realizaram várias curas físicas (Mt. 19.2; Mc. 6.13; Lc 8.48, 10.9; At. 28.9). Isto revela que a saúde das pessoas é importante para Deus e que a Igreja é também enviada para promover a saúde física das pessoas nas diversas formas que estiver ao seu alcance. Para o bem-estar humano a saúde é uma exigência fundamental. Sabemos que tem aumentado a expectativa de vida em muitos lugares de mundo, mas nem todos tem acesso a ela e continuam sendo vítimas da ausência de políticas públicas eficazes na área da saúde. É preciso compreender que curar os doentes também passa pela luta dos cristãos e cristãs pelo investimento governamental na saúde pública e esforços da Igreja em cuidar das pessoas que dela necessita.

4 -  A educação faz parte da tradição judaica herdada pelo cristianismo, que é uma religião de livros, de conhecimentos, ideias e saberes. O Ocidente foi marcado historicamente pela educação proposta pela religião cristã. Não é possível a promoção humana sem educação de qualidade. Conforme o Relatório de Monitoramento Global da Educação 2017/18, 264 milhões de crianças e jovens não frequentam a escola, ainda alertam: “A responsabilização não pode ser atribuída com facilidade a atores únicos porque resultados educacionais ambiciosos dependem de múltiplos atores cumprirem responsabilidades, muitas vezes, compartilhadas.”. Uma educação de qualidade certamente contribuirá para diminuição da pobreza, erradicação da fome, promoção da mulher nas sociedades em geral, visto que a maioria dos adultos analfabetos no mundo são mulheres. Cabe aos cristãos, à luz de sua renovada consciência humana, ocupar-se de projetos de educação, erradicação do analfabetismo, promoção da educação de qualidade, até mesmo para fins de crescimento conceitual do povo cristão.

5 - De acordo com o relato bíblico da criação da humanidade o homem se sentiu solitário no mundo, mesmo convivendo com diversos animais. Deus fez a mulher: “Disse então o homem: ‘Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne.’” (Gênesis 2:23). O homem reconheceu que a mulher era igual a ele, um outro humano que compartilharia com ele o mundo e a tarefa de cuidar de tudo o que foi criado. A mulher foi criada por Deus com toda a dignidade própria do humano, tanto quanto o homem. É responsabilidade da Igreja promover a igualdade de gênero, orientada pela teologia bíblica, tanto em suas relações humanas e ministeriais internas quanto, por meio de sua tarefa pública no mundo.

6 - A face das águas foram, originalmente, habitação do Espírito de Deus: “e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.” (Gênesis 1:2). O Salmo 104 também anuncia que as águas obedecem a voz de Deus (Sl. 104. 5-7). A superfície de nosso planeta é formada, em sua maior parte de água, entretanto, com uma pequena porcentagem sendo potável. O Brasil concentra a maior parte de água doce do mundo. A poluição das águas, os problemas de saneamento, a má distribuição dos recursos hídricos, são um atentado contra toda forma de vida no mundo, pois a água é um elemento fundamental para a vida. Conscientizar sobre o uso da água, preservá-la e lutar pela sua recuperação é tarefa de todos os segmentos sociais, inclusive da Igreja, principalmente por causa de seu compromisso com o Deus que criou as águas e que as comanda.


7 - Este ODS envolve assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todas e todos. Isto requer a utilização de fontes de energia limpa e que não causam danos maiores ao ambiente, como a solar, eólica, geotérmica, maremotriz e hidráulica. O mundo em que vivemos é tecnológico, portanto, o acesso à energia resulta em melhoria de condições de vida e possibilidade de participação nos inúmeros recursos atuais de mobilidade, saúde, comunicação, educação etc. No chamado Mandato Cultural de Gên. 1.26-28 estão implícitas as ordens para homem e mulher desenvolverem o mundo criado, fazer cultura e organizar seu modo de vida. A criação de tecnologias para manipulação e utilização de fontes de energia faz parte do cumprimento dessa ordem, mas considerando que no conjunto do mandato está também a ordenança de cuidar (dominar) do mundo criado. Biblicamente, o usufruto dos recursos do mundo não pode ser de modo destruidor ou que venha a exauri-los, mas deve ser realizado de forma consciente e sustentável.

 8 - “ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e também não havia homem para cultivar o solo.” (Gênesis 2:5) – O trabalho é dom de Deus e antecede a queda humana. Faz parte da natureza humana trabalhar para retirar da terra seu alimento. Desta forma, o desemprego não somente compromete a boa alimentação, mas a própria dignidade da mulher e do homem. Todavia, o aumento da oferta de empregos depende do desenvolvimento econômico da região, que também possibilita maior acesso a educação, saúde e outros requisitos do trabalho. Quando a Igreja assume seu papel na dinâmica do Reino de Deus no mundo e coopera para o desenvolvimento econômico de uma região, atua para a melhoria de vida de inúmeras pessoas e para a promoção da dignidade humana.

9 - A industrialização inclusiva e sustentável e fomento da inovação são fatores indispensáveis no mundo atual para gerar empregos e promover o bem-estar da criação. A industrialização, braço fundamental do capitalismo moderno, trouxe consigo, além da modernização e geração de recursos econômicos, a destruição do meio-ambiente, disparidades econômicas e sociais etc. Da mesma forma como o profeta Amós denunciou o desenvolvimento injusto e exclusivista do Reino de Israel, cabe à Igreja denunciar toda forma de injustiça e danos ambientais e sociais causadas por uma industrialização não sustentável ambiental e socialmente.

10 - O apóstolo Tiago advertiu que não devemos receber bem uma pessoa rica em nosso meio e desprezar as mais pobres (2.1-8). Os profetas do Antigo Testamento denunciaram as injustiças sociais praticadas tanto no Reino do Norte como no Reino do Sul, a ponto de ser uma das razões pelas quais Deus rejeitava o culto de Israel. Os sábios de Israel também exortaram sobre o tratamento ao pobre: "Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados. Erga a voz e julgue com justiça; defenda os direitos dos pobres e dos necessitados". (Provérbios 31:8,9). A luta contra as injustiças e as desigualdades sociais é requisito indispensável da Igreja em missão e sinaliza a presença do Reino de Deus em nossa realidade presente.

 



[1] COSTAS, Orlando E. A Vida No Espírito. In.: Boletín Teológico, México, 18 (21-22): 7-24, jun. 1986, p. 59.

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