A
Teologia Latino-americana teve origem na própria crítica aos missionarismos
estrangeiros na América Latina. A TdL realizou a crítica às missões ibéricas que
vieram para nosso continente no conjunto das colonizações. A teologia
evangélica, articulada principalmente (mas não exclusivamente) pela FTL, tratou
de recontar a história das missões protestantes modernas a partir da
experiência latino-americana. A intenção nunca foi invalidar os esforços
cristãos estrangeiros, mas usar da nossa liberdade para avaliar as fragilidades
desses projetos e também apontar os seus aspectos positivos, para fins de
pensarmos a missão a partir das nossas realidades e dessas críticas,
aprendermos com os erros e os acertos.
A
TdL ouviu Bartolomeu de las Casas, ouviu historiadores e seus próprios teólogos
e teólogas utilizando metodologia historiográfica própria. A FTL, em sua teologia evangélica tem escutado
as diversas vozes que procedem dos seus núcleos, dos eventos realizados e das
diversas iniciativas de fazer teológico que colocam em revisão nossa
experiência sócio-histórica com as missões.
Nesse
esforço, é preciso reconhecer que o cristianismo latino-americano é um dos
maiores do mundo, e, nele, se destaca a Igreja evangélica, principalmente por
causa dos pentecostalismos. O drama dessa constatação é que esse cristianismo
tão numeroso ainda não conseguiu sinalizar com clareza a sua própria identidade,
que é fundamental para nossa contribuição e presença latino-americana no
cristianismo global. Isso se deve ao fato de que a forma como implantaram o
cristianismo em nossas terras foi civilizatória e colonizadora. Sabemos, hoje,
que isso não está na natureza do cristianismo em si, mas está na natureza das
origens políticas e religiosas dos projetos missionários modernos, que correspondiam
acriticamente às propostas desenvolvimentistas dos novos colonialismos.
A
fé cristã, em sua natureza teológica, é encarnacional. Uma obra que explica
isso com muita clareza é o livro de David Bosch, Missão Transformadora, onde
ele analisa os diversos paradigmas teológicos e missiológicos aos quais a fé
cristã foi se adaptando ao longo da história, um dos mais radicais deles foi o
helenismo nos primeiros séculos da Igreja. No processo de helenização do
cristianismo a mudança foi profunda, de ordem epistemológica, os cristãos foram
abandonando a mentalidade hebraica do cristianismo original e passaram a
compreender a fé por outras categorias de pensamento, da filosofia neoplatônica.
Também sabemos que o Humanismo e o Renascimento serviram de pano de fundo
cultural para a Reforma Protestante e que ela é fruto dessa mudança de
paradigma de compreensão da própria condição humana no mundo. Os racionalismos
modernos e o iluminismo também demarcaram profundamente o modo de fazer
teologia na Europa, nenhuma teologia foi a mesma depois deles por mais que
resistam aos seus métodos. Queremos com isso comprovar que a fé cristã e sua
teologia são caminhantes no tempo e nas culturas e se adaptam, inclusive para ser
compreensível a elas e às diversas realidades vivenciais.
Se
assim é o cristianismo, como explicar todos os impedimentos sofridos em nossa
América Latina, inclusive com dizimação de populações, como aconteceu com
vários povos nativos da América Latina na época das colonizações ibéricas, e em
nome da religião cristã e para a sua implantação? Como explicar os controles eclesiásticos,
os impedimentos teológicos, os desestímulos aos estudos dos chamados
“nacionais”, o envio excessivo de obras traduzidas, a imposição de modelos
eclesiásticos, de culto e de educação teológica e outras práticas que foram
próprias das missões protestantes modernas em nossa região, e que resultaram em
uma igreja evangélica na América Latina, mas que ainda não consegue se
reconhecer latino-americana?
É
em vista dessas situações que precisamos falar de colonialismos e
decolonialismos. É fato que a TdL foi mais propositiva em relação a esse
assunto, até mesmo devido à sua radicalidade e à sua orientação revolucionária.
A FTL foi comprovadamente mais tímida em se assumir como teologia decolonial,
pois para isso ela precisa admitir que tanto as missões católicas e
protestantes como suas teologias foram claramente colonizadoras, ainda que também aponte os aspectos
positivos delas como sempre faz em seus documentos. No âmbito da FTL é preciso
ter a maturidade para entender que fazer a crítica às missões que foi o seu
próprio berço não é o mesmo que desmerecer esses esforços.
Continuar
a repensar a missão da Igreja e de perspectiva crítica, é urgente. É preciso considerar
que a reflexão acerca da missão desenvolvida no século passado se deu com o
suporte das teologias ocidentais e resultou em uma história das missões a
partir das grandes empresas evangelizadoras e, invariavelmente, na perspectiva
da conquista dos povos. Um outro ponto de vista dessa história precisa ser
validado, ao menos por nós. Há necessidade atual de uma teologia da missão que
se faça a partir dos povos conquistados, dominados, colonizados, subalternaizados
de modo que eles possam contar sua própria história como campo de missão, e
recorrer ao texto bíblico a partir de outras perspectivas. Uma nova compreensão
da missão, com outros fundamentos, pode surgir de tais esforços. A missão a partir da América Latina
precisa se fazer de outras maneiras e à luz de suas próprias teologias, de uma
nova leitura bíblica, para fins de ser ação libertadora na América Latina,
conforme adverte o próprio Moltmann fazendo referência ao papel da Igreja no
mundo onde ela atua:
A
Igreja deve refletir e representar o Reino de Cristo em primeiro lugar dentro
de si mesma. A ordem de sua comunidade não pode ser adotada ou determinada pela
situação de domínio e dominação da sociedade em que vive, pois ela deve
corresponder a seu Senhor e representar para a sociedade uma nova vida.
(MOLTMANN, 1980, p. 8)
Sobre
isso, nas últimas décadas, vêm se falando principalmente no âmbito das
humanidades, das novas epistemologias latino-americanas e caribenhas. Elas
contemplam os vários cenários de lutas e representações sociais que propõem
outros modos de saber, a partir dos múltiplos contextos da América Latina e
Caribe, e nas suas ricas formas de linguagem e diversas sabedorias. Tais
discussões podem ser situadas no conjunto dos debates acerca das epistemologias
do sul global. Neste
mesmo conjunto de discussões e em relação a eles estão também as teorias
decolonias, que propõem formas de superação aos inúmeros meios de controles e
dominações que incidiram e incidem sobre a América Latina pelas empresas e
projetos colonizadores ao longo da história moderna, nelas, incluindo as
missões.
Precisamos
de uma missiologia que proponha não somente uma nova compreensão da missão, mas
que contribua para uma outra forma de ser evangélico na América Latina e em
todos os lugares onde está fé for levada. O que estamos dizendo é que conforme
entendemos nossa missão no mundo como Igreja será a forma como nossas
identidades serão construídas. Uma missão para a justiça do Reino de Deus, que
provoque um entendimento mais profundo desse compromisso, certamente
contribuirá para uma vivência religiosa evangélica mais pacífica,
reconciliadora e restauradora da criação. Mas uma missão com um discurso e
práticas bélicas e colonizadoras, certamente resultará em igrejas intolerantes
e dadas a polarizações e violências.
Isso
acontece porque a ideia de missão é a mesma ideia de nossa razão como cristãos
e cristãs no mundo, o nosso papel dentro das diversas realidades sociais. Se
assumirmos a compreensão de missão baseada no uso inicial do termo pelos
jesuítas de contrarreforma, que foi o espírito em que foi empregado, como uma
campanha militar, agiremos como soldados que conquistam povos, mas se nos
basearmos na missão de Jesus, com a ideia de serviço e doação, esvaziando o
termo de toda a sua violência histórica, seremos, de fato, comunidade
testemunhal no mundo.
Uma
outra missiologia, a partir da América Latina, sua cultura e da sua experiência
histórica, pode contribuir para sobrepor qualquer outra teologia da missão que
em partes, ou em sua totalidade, não corresponda ao evangelho encarnacional de
Jesus Cristo e apresente uma prática colonizadora. O movimento de Missão Integral
poderia propor essa missiologia, mas, infelizmente, a resistência interna do
pessoal da missão de assumir seu caráter teológico e do pessoal da teologia em
reconhecer seu potencial teológico e mesmo a sua vigência atual, dificulta no
avanço de sua ordenação missiológica.
O
modelo missional praticado no século XIX e XX, que deu origem as agências
missionárias e envios de missionários especializados, já não atende os tempos
atuais, principalmente no antigo mundo dos dois terços como denominava Orlando
Costas. Além da exaustão do modelo, ele, já em sua época, apresentou problemas
irrecuperáveis, que estavam na sua própria gênese e compreensão pouco
aprofundada de missão, sim, devido à ausência de uma missiologia profunda, como
vemos na pauta das discussões da I Conferência Missionária Mundial de Edimburgo,
que priorizou a estratégia e os métodos em lugar da problematização da missão. Em
Lausanne, sabemos que esse assunto da missão e seu entendimento mais amplo foi
tocado de modo involuntário por sua organização, foi provocado dentro do
próprio congresso por representantes, inclusive, da América Latina.
Como
podemos avançar em uma prática missionária que corresponda melhor aos tempos se
não a pensarmos profundamente? Se quisermos caminhar em direção à uma teologia
de missão e a uma missão da teologia precisamos discutir o assunto e tratá-lo
com seriedade. Para isso, precisamos assumir o caráter colonizador das missões
protestantes, do próprio termo missão, o espírito de conquista que sempre está
na bagagem missionária, a recorrente subestimação dos povos e grupos
evangelizados tanto em sua cultura quanto em sua capacidade teológica.
Precisamos sair dos lugares abissais em que a teologia ocidental nos coloca,
como aquela parte do mundo em que as teologias devem ficar escondidas sob os
nomes de étnicas, exóticas, específicas, e emergir, ainda que seja para nossos
próprios mares, nos situando em lugares de visibilidades. Isso ninguém fará por
nós, somos nós mesmos que temos que fazer, que em nossas próprias libertações,
nos permitamos des-esconder, des-impedir nossas sabedorias, nossas teologias,
nossas vozes. Somente nessa nova postura construiremos uma missiologia
libertadora, integradora, propositalmente decolonial.
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