Esse texto é uma reflexão, a partir de uma análise da família
de Jesus com base em uma hermenêutica mais realista e contra as idealizações
patriarcais, principalmente contemporânea, que visam impor um modelo de família
que não existe e nunca existiu, a não ser a partir de construções forçadas e
sofridas, que muitos aderem sem o respectivo conhecimento bíblico e mesmo sem
olhar mais detidamente para a configuração da própria família e suas imperfeições.
A Bíblia nos conta que José e Maria eram noivos. Na sociedade
judaica daquela época o noivado era um compromisso tão sério quanto o casamento
e a mulher somente poderia ser deixada em caso de repúdio. Quando José soube da
gravidez de Mateus diz que ele intentou deixá-la, “repudiá-la”, porém, preocupado
com ela, não quis denunciá-la às autoridades religiosas, mas fazer isso
secretamente. Isso significa que, mesmo tendo a mesma fé que Maria, ele não
deve ter acreditado nas justificativas que ela deu para a gravidez, pois se
isso tivesse acontecido não teria pensado em deixá-la, e o redator bíblico ou a
tradição (patriarcal) da Igreja não teriam tido a necessidade de justificá-lo. José
sabia que ao deixá-la ela sofreria um dano social que a marcaria pela restante
da vida. Outra situação de não assumir a criança é que naquela cultura quem
dava nome aos filhos era o pai, então Jesus não seria “filho de...” (um homem,
nesse caso), como era a composição dos nomes na época, inclusive para a
inclusão genealógica. Mateus coloca Jesus na genealogia de José vinculando-o a
toda ancestralidade davídica, mas faz questão de observar: “Jacó gerou a José,
o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo.” (Mat. 1.16). Lucas, em
sua genealogia de Jesus menciona: “Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era,
conforme se supunha, filho de José...” (3.23).
O texto bíblico diz que um milagre dos céus, no caso, uma
angelofania, impediu José de fazer essa loucura, de deixar uma jovem
adolescente sozinha numa sociedade patriarcal, cuidando do próprio filho que
nem mesmo teria o nome de um homem. A história bíblica continua relatando
esforços de cuidado depois dessa mudança de comportamento de José, sua
conversão para a família a partir da intervenção divina, a fuga para o Egito
para proteger a criança e depois o ensina da profissão de carpinteiro.
Há muitas histórias nessa história, inclusive de relatos e
tradições patriarcais da Igreja que tentam a todo custo preservar a figura
masculina de José. Certamente, uma situação é verdadeira, em princípio e tendo
como base essa condição masculina inicial José quis ir embora, abandonar a
família, como muitos homens fazem desde os tempos mais remotos, e ainda sendo
justificado pelos redatores do texto bíblico de que estava fazendo isso pelo
bem da família. Na realidade, na maioria dos casos, sabemos, que homens
abandonam as famílias pensando em si próprios, tomados por um egoísmo machocêntrico,
pensando na sua própria reputação social, nos seus interesses, no seu
bem-estar, na sua incapacidade de lidar com novas configurações de vida e
orientados por sua eterna adolescência.
Maria era muito jovem quando engravidou, não é preciso muito
esforço para imaginá-la cheia de dúvidas, de medos e de silêncio. O que falar
numa hora dessas afinal? – Não se tratava somente de uma responsabilidade
religiosa, mas de uma criança, do seu filho. Por vezes, esquecemos que quem estava
na barriga de Maria era uma criança que correu o risco de ser abandonada por um
pai humano. Descobrir uma gravidez, não a entender direito, ser desacreditada
pelo noivo, o que implicaria em ser desacreditada por toda aquela sociedade, teria
sido uma experiência muito difícil de vida. Somente essa situação tão de mulher
em todos os tempos é suficiente para dedicar a Maria uma admiração especial.
José, diante da intervenção divina, decidiu assumir o filho, casar-se
com ela, dar seu nome à criança, agir como pessoa responsável. José adotou
Jesus.
Não sabemos com detalhes o que aconteceu depois, como ficou
essa história de Maria com José, a tradição prefere acreditar que ele morreu
cedo e Maria ficou sozinha, pois ele desaparece dos relatos e o que temos é a
história de Jesus com a sua mãe. É possível que em outras tradições, mesmo
apócrifas, seja possível descobrir algum fato novo. Maria é relatada diversas
vezes ao lado de Jesus e, quando ele estava perto da morte, pediu a João que
cuidasse dela a partir daquele momento, fazendo o inverso das intenções de José
e tomando a iniciativa de protegê-la. O fato é que não deixou sua mãe sozinha
em uma sociedade pouco favorável às mulheres. Isso significa que, de alguma
forma, mesmo distante por vezes, ele havia cuidado dela até então. João nos
conta que a levou para a sua casa, assumindo, portanto, seu cuidado e proteção.
Ela deveria estar na casa dos 50 anos quando isso aconteceu.
Uma coisa que aprendemos dessa história é que o ideal de
família perfeita, inclusive baseada na família de Jesus, não existe e não passa
de uma construção forçada por tradições patriarcais da Igreja e por evangélicos
conservadores atuais que desejam impor sobre os fiéis um modelo de família que
nem eles próprios conseguem praticar em seus lares, a não ser por meio de ações
extremamente impositivas.
Jesus veio ao mundo! Estar no mundo e humanizar-se é, de
fato, adentrar para esses meandros das relações complexas, marcadas por amor e
egoísmo, doação e retenção para si. As famílias são formadas por humanos que
vivem nas sociedades construídas por eles, portanto, redes, inclusive
familiares, em que não há perfeição. A família de Jesus não se diferencia de
muitas famílias daquela época e mesmo de nosso tempo, cheias de dilemas,
preocupada em dar satisfações sociais, esconder seus problemas das lideranças
religiosas que se colocavam (e se colocam até hoje) como guardiães de normas
rígidas, moralidades opressoras por eles próprios construídas. Há muitas hipocrisias
nessas tais construções e lares de cristãos que escondem muitas coisas. A
família de Jesus era formada por um homem que quase desistiu do lar, por uma
jovem que embora muito silenciosa (guardava no coração) não se ausentou da vida
do filho até mesmo contrariando regras sociais da época, o próprio Jesus que
parecia “sumir no mundo” em sua missão. Era uma família não muito típica, mas
como muitas no mundo e na história, se esforçava por estar junta, mesmo em meio
às situações complexas da vida e de sua própria humanidade.
A questão aqui não é macular a memória de José e nem mesmo
desmerecer sua figura, mas também não o justificar. O esforço é por tentar
retirar o filtro das tradições a que a história deve ter sido submetida e
enxergar José não somente como homem do seu tempo, mas das masculinidades
forjadas nos sistemas sociais históricos com os quais convivemos. Nesse vaivém
da leitura, temos uma fusão de horizontes históricos e reconhecemos como Deus
agiu na vida de Jesus e como Jesus se revelou para nós uma humanidade diferente,
que, mais uma vez supera, vai para além da cultura e de normas sociais
injustas, principalmente aquelas patriarcais, faz diferente e ensina como fazer
diferente, além de um modelo de humanidade para todos e todas nós, demonstrou aspectos
de homem que todo homem deveria ser, daquele que vê e age além de si próprio e de
seu autocentro, que se permite amar além de si mesmo e cuidar, doar-se e marcar
as vidas dos filhos e filhas, inclusive em suas memórias; e isso para nós é
Palavra de Deus. Jesus não se importou em ser, humanamente, filho da sua mãe,
afinal essa é a memória mais forte que por nós foi herdada.
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