sábado, 18 de setembro de 2021

Fé no Clima: encantamento e cuidado da criação



Regina Fernandes[1]

            Quem viveu algumas décadas como eu já experienciou várias mudanças climáticas nos lugares que habitamos. Me lembro de tempos no Paraná em que os invernos eram mais longos e muito rigorosos; mesmo em São Paulo, onde moramos por algum tempo, me recordo de tempos de frio intenso em que os agasalhos que tínhamos nunca eram suficientes. Percebemos o clima mudar no país ao longo das últimas décadas, e as ciências que estudam a vida no planeta nos explicam que isso se deve à relação humana com o meio-ambiente, que é mais predadora do que cuidadora. Parece que cada geração tem vivido no planeta como se ele servisse somente a ela, e, assim, consumido seus recursos. Por mais óbvio que isso seja, somente nos últimos tempos temos nos despertado para uma consciência da relação de interdependência da vida no mundo, assim mesmo, devido às notícias de que ela está globalmente ameaçada.

            Nós cristãos acreditamos que Deus é a fonte da vida e que ela é um dom dele a nós. O relato da criação em Gênesis 1 canta as origens da vida no mundo atribuindo-a a Deus como o Criador de tudo, mas também informa que ele a colocou sob nossos cuidados (v. 26), como se coloca uma harmoniosa sinfônica sob os cuidados de um maestro. A orquestra precisa dele tanto quanto ele precisa dela e é nessa relação respeitosa que a música pode ser perfeita.

O Salmo 104

            Outro texto que pode ser tratado também como um relato da criação é o Salmo 104, que é um hino de louvor ao Criador. Trata-se de uma linda poesia, um cântico, que descreve um belo cenário de campo onde todos os seres que habitam nele vivem harmoniosamente em seus ambientes, são alimentados e encontram morada. “Ele fez a lua para marcar estações; o sol sabe quando deve se pôr.” (Sl 104:19).  Outro aspecto que chama a atenção no salmo é que tudo está em movimento, a criação é dinâmica. O salmista não somente demonstra encantamento com tudo o que vê, mas expressa o desejo de que Deus se agrade da visão da criação que ele expressa em seu cântico. Ele também ora a Deus desejando que “os pecadores desapareçam da terra e os ímpios nunca mais existam”. (Sl 104.36). Esse desejo do salmista precisa ser interpretado em relação com o seu poema e a descrição que ele faz da vida harmoniosamente em acontecimento.

Nos versos 29 e 30 o salmista destaca a importância da Ruah (do sopro) de Deus para a manutenção da vida no mundo, é por esse sopro que surgem os ventos, vem a chuva e a terra é renovada provendo os seres de alimentos. Em seu movimento Deus se mantém na criação e a sustenta, e os humanos, conforme Gên. 1, são chamados a participar dessa dança. O clima é visto pelo poeta bíblico como uma expressão da bondade de Deus, que colocou os astros em seus lugares para nos prover não somente da luz, mas das condições climáticas necessárias para que a vida aconteça. Reduzir a relação com Deus a uma experiência interna e individual é privar-se de ver Deus agindo no mundo e cuidando de tudo o que existe nele.

A fé em Deus deve, em certo sentido, reverberar para uma fé na criação, não somente em uma visão estática dela, mas, inclusive, do seu movimento, como evidencia o Salmo 104, das águas que correm, os pássaros que voam, os animais que saltam sobre os montes. A vida é vida em movimento. Todavia, tudo no mundo de Deus está interrelacionado, nada existe sozinho e quando algo não está bem, todo o restante da criação sofre. O clima é um dos grandes sinalizadores quando as coisas não vão bem, ele se desregula e sentimos seu impacto, em uma espécie de convulsão climática. O planeta aquece, os gelos derretem, as águas aumentam e o planeta entra em sofrimento. Aquela linda poesia salmódica se torna uma saudade de uma visão que não existe mais: “Dos seus aposentos celestes ele rega os montes; sacia-se a terra com o fruto das tuas obras! É ele que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva, para da terra tirar o alimento: o vinho, que alegra o coração do homem; o azeite, que faz brilhar o rosto, e o pão que sustenta o seu vigor.” (Sl 104:13-15). Nossa experiência de mundo se torna tensa, pois a vida se sente ameaçada.

A fé no clima é a fé que se ocupa da criação divina, que se entende responsável por tudo aquilo que Deus colocou sob nossos cuidados, como aquela do salmista que além de se encantar com a criação desejou cantá-la para Deus e agradá-lo com o seu modo de enxergar a vida em acontecimento.




[1] Teóloga evangélica, Mestre em Teologia e Práxis, mestre em missiologia, especialista em História e Cultura Afro-brasileria e indígena. Coordenadora editorial da Editora Saber Criativo.

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