Regina Fernandes[1]
Quem
viveu algumas décadas como eu já experienciou várias mudanças climáticas nos
lugares que habitamos. Me lembro de tempos no Paraná em que os invernos eram
mais longos e muito rigorosos; mesmo em São Paulo, onde moramos por algum
tempo, me recordo de tempos de frio intenso em que os agasalhos que tínhamos
nunca eram suficientes. Percebemos o clima mudar no país ao longo das últimas
décadas, e as ciências que estudam a vida no planeta nos explicam que isso se
deve à relação humana com o meio-ambiente, que é mais predadora do que
cuidadora. Parece que cada geração tem vivido no planeta como se ele servisse somente
a ela, e, assim, consumido seus recursos. Por mais óbvio que isso seja, somente
nos últimos tempos temos nos despertado para uma consciência da relação de
interdependência da vida no mundo, assim mesmo, devido às notícias de que ela
está globalmente ameaçada.
Nós cristãos acreditamos que Deus é
a fonte da vida e que ela é um dom dele a nós. O relato da criação em Gênesis 1
canta as origens da vida no mundo atribuindo-a a Deus como o Criador de tudo,
mas também informa que ele a colocou sob nossos cuidados (v. 26), como se
coloca uma harmoniosa sinfônica sob os cuidados de um maestro. A orquestra
precisa dele tanto quanto ele precisa dela e é nessa relação respeitosa que a
música pode ser perfeita.
O
Salmo 104
Outro texto que pode ser tratado
também como um relato da criação é o Salmo 104, que é um hino de louvor ao
Criador. Trata-se de uma linda poesia, um cântico, que descreve um belo cenário
de campo onde todos os seres que habitam nele vivem harmoniosamente em seus
ambientes, são alimentados e encontram morada. “Ele fez a lua para marcar
estações; o sol sabe quando deve se pôr.” (Sl 104:19). Outro aspecto que chama a atenção no salmo é
que tudo está em movimento, a criação é dinâmica. O salmista não somente
demonstra encantamento com tudo o que vê, mas expressa o desejo de que Deus se
agrade da visão da criação que ele expressa em seu cântico. Ele também ora a
Deus desejando que “os pecadores desapareçam da terra e os ímpios nunca mais
existam”. (Sl 104.36). Esse desejo do salmista precisa ser interpretado em
relação com o seu poema e a descrição que ele faz da vida harmoniosamente em
acontecimento.
Nos
versos 29 e 30 o salmista destaca a importância da Ruah (do sopro) de Deus para
a manutenção da vida no mundo, é por esse sopro que surgem os ventos, vem a
chuva e a terra é renovada provendo os seres de alimentos. Em seu movimento
Deus se mantém na criação e a sustenta, e os humanos, conforme Gên. 1, são chamados
a participar dessa dança. O clima é visto pelo poeta bíblico como uma expressão
da bondade de Deus, que colocou os astros em seus lugares para nos prover não
somente da luz, mas das condições climáticas necessárias para que a vida
aconteça. Reduzir a relação com Deus a uma experiência interna e individual é
privar-se de ver Deus agindo no mundo e cuidando de tudo o que existe nele.
A
fé em Deus deve, em certo sentido, reverberar para uma fé na criação, não
somente em uma visão estática dela, mas, inclusive, do seu movimento, como
evidencia o Salmo 104, das águas que correm, os pássaros que voam, os animais
que saltam sobre os montes. A vida é vida em movimento. Todavia, tudo no mundo
de Deus está interrelacionado, nada existe sozinho e quando algo não está bem,
todo o restante da criação sofre. O clima é um dos grandes sinalizadores quando
as coisas não vão bem, ele se desregula e sentimos seu impacto, em uma espécie
de convulsão climática. O planeta aquece, os gelos derretem, as águas aumentam
e o planeta entra em sofrimento. Aquela linda poesia salmódica se torna uma
saudade de uma visão que não existe mais: “Dos seus aposentos celestes ele rega
os montes; sacia-se a terra com o fruto das tuas obras! É ele que faz crescer o
pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva, para da terra tirar o
alimento: o vinho, que alegra o coração do homem; o azeite, que faz brilhar o
rosto, e o pão que sustenta o seu vigor.” (Sl 104:13-15). Nossa experiência de
mundo se torna tensa, pois a vida se sente ameaçada.
A fé no clima é a fé que se ocupa da criação divina, que se entende responsável por tudo aquilo que Deus colocou sob nossos cuidados, como aquela do salmista que além de se encantar com a criação desejou cantá-la para Deus e agradá-lo com o seu modo de enxergar a vida em acontecimento.
[1]
Teóloga evangélica, Mestre em Teologia e Práxis, mestre em missiologia,
especialista em História e Cultura Afro-brasileria e indígena. Coordenadora
editorial da Editora Saber Criativo.
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