Regina Fernandes
A
Bíblia é acolhida por nós cristãos como Palavra de Deus, portanto, palavra
divina, que veio de Deus a nós. Mas também sabemos que ela é palavra humana,
que tanto fala a Deus como fala entre nós, em nossa humanidade. Nesse sentido,
ela é como Jesus Cristo, divino e humano. Ele também é palavra de Deus a nós,
como testemunhou João (1.1-2), e ela nos conta sobre ele.
Este
é um ponto de partida fundamental para uma leitura bíblica contextual: ler a
Bíblia como palavra de Deus e como palavra humana. A outra exigência dessa
forma de leitura é que não podemos tratar a Bíblia como um vaso frágil que pode
quebrar ao nosso toque. Precisamos lembrar que ela, como Escritura cristã, já
existe a mais de 2.000 anos e tem resistido a incontáveis ataques, aliás, esse
é um dos argumentos sobre seu caráter divino, que Deus sustenta sua palavra no
mundo. Os estudos críticos modernos da Bíblia não devem ser utilizados na forma
como eles se apresentam, é preciso ter critério sobre os métodos que eles
propõem, mas precisamos reconhecer que nos ajudaram a ter mais liberdade com o
estudo e a leitura da Bíblia, inclusive em perspectiva crítica.
Meu
ponto de partida aqui é que os povos de culturas sapienciais e de valorização
da oralidade possuem mais caminhos para uma leitura correta da Bíblia do que aqueles
onde prevalece os modos ocidentais de conhecimento, dependentes dos métodos
científicos e sistemáticos.
A
Bíblia como livro de sabedoria
Há na Bíblia um conjunto de livros
que chamamos de “sapienciais”, são eles: Jó, Provérbios e Eclesiastes.
Entretanto, a linguagem de sabedoria está presente em toda a Bíblia e foi a
principal forma de pensamento utilizada para transmitir seus testemunhos. O
próprio Jesus Cristo foi reconhecido pelo povo como um sábio, pois utilizou a
forma sapiencial (da sabedoria) para comunicar seus ensinos. Ele também leu a
Bíblia sapiencialmente.
O sapiencialismo, ou movimento de
sabedoria, ascendeu em Israel com Salomão e tinha como orientação a ideia da
retribuição, como vemos em muitos capítulos de Provérbios, algo parecido com a doutrina
da prosperidade ensinada hoje em muitas igrejas, em que o justo colhe o bem e o
ímpio colhe coisas ruins. No desenvolvimento do movimento surgiram outros
sábios, mais críticos àquele ensino antigo e de retribuição, que ensinavam que
coisas ruins também acontecem com pessoas boas e coisas boas acontecem com
pessoas ruins, como era o caso de Jó, um livro provavelmente desse período.
O movimento da sabedoria era baseado
na preocupação com a boa condução da vida, tomar boas decisões, respeitar as
pessoas mais velhas e seus conselhos por causa da experiência de vida que elas
possuem, aprender com as experiências vivenciais, ouvir e dar conselhos, ter
juízo etc. É possível ver essa orientação sapiencial nos escritos do
Pentateuco, na HDTa, nos profetas e principalmente nos Escritos. No Novo
Testamento, podemos identificá-la nos ensinos de Jesus, em certa linguagem dos
evangelhos, e, principalmente, no livro de Tiago.
A cultura indígena possui como uma
de suas principais marcas a valorização da sabedoria, principalmente na forma
dos saberes ancestrais e das pessoas mais velhas das comunidades (dos avós). No
caso de Israel, além das pessoas mais velhas da família, havia os sábios,
lideranças que se ocupavam exclusivamente do aconselhamento e do ensino. A
razão é a mesma, eram pessoas que viveram mais e possuíam, portanto, mais
experiência de vida, além de serem respeitados deveriam ser ouvidos. Relacionado
a isso está a importância do conselho e da linguagem proverbial. Não se trata
de ensinos acadêmicos, centrados nas teorias, mas na vida e sua experiência,
que se comunica nas interações familiares e da comunidade, nas práticas
comensais, no encontro com as pessoas mais velhas, na reunião em volta da
fogueira e até mesmo nas festas e celebrações.
Os povos originários, organizados ou
provenientes de sociedades tribais, possuem na sua cultura da sapiencialidade
(sabedoria ou cultura dos saberes) caminhos muito mais assertivos de leitura
bíblica contextual, pois compreendem por experiência própria essa linguagem. Na
realidade, mais do que linguagem o sapiencialismo é uma epistemologia, um modo
de se conhecer a realidade.
Oralidade
Outro elemento fundamental na
história bíblica e na cultura indígena. Sabemos que todo escrito bíblico teve
como fase prévia a tradição oral, mesmo do Novo Testamento, inclusive os textos
dos apóstolos. A cultura judaica, além de ser sapiencial é marcada pela
oralidade, principalmente no tempo da história bíblica. A tradição oral possui
como formas de comunicação a narrativa, os testemunhos, o conselho
(sapiencial), a poesia, a música e a dança. Incluímos aqui a música e a dança
porque tanto em Israel como nas culturas indígenas elas tem mais finalidade narrativa
do que estética, pois servem para transmitir memórias e ensinos.
No Antigo Testamento é evidente o
uso da oralidade no período patriarcal e de pré-escrita das memórias e
tradições. As histórias eram contadas e recontadas às novas gerações, para que guardassem
em suas memórias e as tivessem como orientação da própria vida. Mas, mesmo
depois dos primeiros escritos, manteve-se a tradição oral como forma principal
de transmissão dos conhecimentos em Israel. Certamente que ela também é a
principal forma de comunicação dos ensinos sapienciais. Jesus Cristo não
escreveu livros, todos os seus ensinos aos discípulos e às multidões foram na
forma da oralidade. Foram seus discípulos que colocaram suas palavras em
escritos posteriormente. Contar e cantar a fé faz parte da tradição cristã.
A oralidade é também a principal
forma de comunicação nas culturas dos povos originários, no Brasil, por
exemplo, muito povos ainda são ágrafos e mantém suas tradições e memórias no
ensino de suas lideranças mais velhas, além dos anciãos das aldeias, os
caciques e os pajés são guardiães de sabedorias. Nesse tempo de pandemia,
várias dessas lideranças morreram pelo atraso da vacinação das comunidades
indígenas, além da vida dessas pessoas, sentimos profundamente pela perda de
conhecimentos ancestrais, inclusive aqueles de manipulação das plantas para
cura de enfermidades.
Outro recurso para transmissão das memórias
entre os povos indígenas é sua arte, expressa na forma de músicas que contam as
histórias do povo e comunicam ensinos importantes, da dança que também
recuperam momentos importantes da vida do povo, do artesanato que remete para a
cultura e para a sua preservação histórica.
Conclusão
Nas leituras bíblicas ocidentais ainda
não se valoriza como se deveria o estilo e os textos sapienciais e sua
importância para a compreensão do sentido do texto bíblico. Todavia, é
comprovado que essa forma de pensamento e transmissão de conhecimento está nas
bases de toda a Escritura, inclusive dos enisnos de Jesus Cristo. Essa poderia
ser uma contribuição significativa dos povos indígenas, porque também são povos
de sabedoria.
A
oralidade é também uma característica da cultura e da história bíblica que
precisa ser mais bem recuperada. A Bíblia precisa ser lida nessa perspectiva da
oralidade, dos seus testemunhos, das suas narrativas, a fim de se recuperar
ensinos importantes que somente se percebe quando olhada desde essa ótica. Essa
é outra contribuição que povos de culturas orais podem dar para a leitura da
Bíblia.
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