segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Existe um evangelicalismo radical?

 




Regina Fernandes[1]

Em várias partes de América Latina grupos que se intitulam evangélicos, de corte fundamentalista, se aliaram a governos e movimentos de extrema-direita. Tais evangélicos apresentam como principais características a perseguição sistemática ao que consideram como expressões e representações da esquerda política, sob o velho discurso da guerra fria; o negacionismo em relação à pandemia; a defesa do armamento civil; a busca pela ocupação de espaços de poder governamental, para fins de instalação de formas de cristandade; o discurso de prosperidade como ideologia religiosa; a identificação com o neoliberalismo econômico e o capitalismo que ele propõe; ações inquisitórias em relação ao que consideram como liberalismo religioso; espalhamento de fake news como estratégia de indução das massas etc. Também são marcadamente homofóbicos, defensores de supremacias brancas, machistas e mediadores de imperialismos.

Recorrência Histórica

De fato, essa não é uma novidade atual, pois na história sempre houve pessoas e grupos evangélicos se aliando a sistemas de poder na América Latina, como aconteceu na época das ditaduras militares, com as perseguições sistemáticas a todos e tudo o que era taxado de esquerda política, o que incluía teologias, teólogos e teólogas. Sob o discurso de purificação teológica e institucional líderes fundamentalistas entregaram aos militares e à tortura aqueles e aquelas que propunham teologias diferentes das suas. Rubem Alves relata na introdução da obra Da Esperança sua própria experiência com esses grupos inquisidores na época da ditadura militar no Brasil, quando ele precisou sair forçadamente do país para um doutorado não programado nos EUA, após “colegas evangélicos” de ministério o denunciarem aos militares como sendo comunista. Ele descreve a ação perversa dessas pessoas como tendo um sentido malignamente religioso, como sendo um sacrifício a Deus, de zelo cristão, entregar pessoas para a morte ou para o sofrimento. Trata-se, na realidade, de discursos que visam dar legitimidade religiosa para ações anticristãs e biblicamente reprováveis.

Sabemos que o cristianismo sempre teve grupos e expressões internas aliadas a sistemas perversos de poder, comprometendo o próprio nome da religião. De fato, apresentar-se como cristão no mundo pode remeter a uma série de significados, e, muitos deles não positivos e de bom testemunho. O mesmo podemos dizer em relação ao protestantismo desde suas origens.

Em nossa família vivenciamos experiências difíceis no cristianismo evangélico na ‘própria pele.’ Na década de 90, embora já findado o regime militar no Brasil, mas não as influências teológicas fundamentalistas e de inquisição, um pastor da Convenção Batista Nacional, instituição evangélica da qual participávamos, que morou muito tempo nos EUA e havia regressado para o Brasil, iniciou uma campanha declarada de perseguição às pessoas da denominação que manifestassem qualquer tipo de propensão, ensino ou menção da crítica bíblica, pois ele próprio se declarava como “caçador de cabeça de liberais”. Em 1995 fomos expulsos do seminário da denominação em Minas Gerais (STEB), onde morávamos com nossa família, juntamente com o pastor, doutor em Antigo Testamento e diretor do seminário na época e sua família, por termos sido taxados de liberais. A razão era que nas aulas de Antigo Testamento nosso amigo doutor do AT e de Novo Testamento ministradas por Sidney, mencionavam e estudavam os métodos críticos entre os métodos de estudos bíblicos desenvolvidos na história. O Conselho do Seminário na época demitiu os dois professores, deram às famílias o prazo de pouco mais de um mês para deixarem as residências. Tínhamos duas filhas, uma de 2 anos e a outra de seis anos naquela década. Nos deram como acerto salarial o valor correspondente (atualmente) a dois salários-mínimos.

Fizeram do evento de comunicação das medidas que seriam tomadas uma cena épica. Estávamos em aulas naquele dia e fomos chamados à capela do seminário em que a maioria dos estudantes eram internos. Na época, eu ainda cursava teologia. Em torno de onze pastores entraram pelo portão central do seminário como que marchando. O presidente da denominação se posicionou à frente na capela e os demais pastores fizeram um semicírculo à sua frente, para protegê-lo daqueles “ferozes seminaristas”. Com semblantes fechados e impositivos informaram que fariam uma limpeza de tudo o que havia sido ensinado, construído e realizado nos três anos que os dois dirigentes estiveram na instituição. Entre as ações de “limpeza” que o novo grupo que assumiu realizou esteve a queima de livros no seminário e a retirada da Biblioteca de obras consideradas liberais. Nos anos seguintes encontramos livros com o carimbo da biblioteca em sebos da cidade de Belo Horizonte. Coincidentemente, parte daqueles que participaram desse evento inquisitório assumiram também a diretoria, coordenação e cargos docentes no referido seminário. A instituição, entretanto, não suportou o desmanche, o desgoverno e a ausência de teologia daqueles pastores, e, depois de alguns anos, foi fechada e seu campus vendido para pagamento de dívidas realizadas nesse período da dita “purificação” institucional.

Se buscarmos nas influências históricas precursoras desses movimentos evangélicos encontraremos o puritanismo norte-americano que chegou à América Latina na bagagem teológica do missionarismo protestante, também encontraremos as intolerâncias do movimento fundamentalista com origem no início do século passado. Mas não podemos deixar de considerar nossa própria genética latino-americana e tendência para brigas pelo poder, nesse caso, sob bases ideológicas e teológicas vindas de fora.

Historicamente, esses grupos podem ser identificados no conjunto do movimento evangélico, pois também possuem suas raízes tanto na Reforma Protestante quanto nos avivamentos religiosos do séc. 18, que foi gerador de uma série de outros movimentos, como o metodismo e o evangelicalismo (de envolvimentos sociais), posteriormente, o pentecostalismo e o fundamentalismo. Podemos dizer que o protestantismo e seus movimentos geraram muitos filhos e com personalidades diversas. É um equívoco, até uma inocência, afirmar que tudo o que surgiu no interior do protestantismo é de fato bom.

Miguez Bonino explica o termo evangélico “em sua acepção anglo-saxã” e originária, como referente àqueles que afirmam confiança irrestrita na Bíblia, pregação da salvação em Jesus Cristo inclusive como caminho para a santidade da vida no mundo. (BONINO, 2013, p. 29). Esse movimento, que foi teológico, pois partiu de concepções teológicas, gerou em sua época de surgimento esforços evangelizadores e de envio de missionários para várias partes do mundo, espalhando os ensinos evangélicos que serviram de base para as novas igrejas fundadas nos diversos campos missionários principalmente na Ásia, África e América Latina. Das missões estadunidenses herdamos também o denominacionalismo e o fundamentalismo teológico sectário e divisionista.

O chamado protestantismo de missão foi, caracteristicamente, um movimento evangélico, no sentido histórico do termo. Ainda que tenha apresentado ações de preocupação social, geradoras de várias instituições educacionais, hospitais, editoras etc., sabemos que a maioria delas foram marcadamente desenvolvimentistas, portanto, priorizando o atendimento de elites que poderiam contribuir para o desenvolvimento econômico e político da região.

O termo evangélico surgiu associado a um movimento no período moderno referente à prática da evangelização, com um sentido pejorativo daqueles que a realizavam. Essa evangelização, como ampla pregação, estava associada a mudanças sociais, como se verificou no metodismo que nasceu no seio desse movimento, todavia, era também fruto de sua época, e, no esforço da evangelização, houve associação (aliamento) a projetos expansionistas, imperialistas e colonialistas de muitas nações.

Renovação Evangélica

Na América Latina, surgiu em meados do século passado uma nova forma de ser evangélico, que Miguez Bonino chamou de “renovação evangélica”. Esse movimento que ele associa à Fraternidade Teológica Latino-americana, descreve como:

Resgata-se e recupera-se uma tradição evangélica, particularmente ligada ao movimento anabatista dos séculos 16 e 17 e ao despertar do séc. 18 na Inglaterra e nos Estados Unidos [...] tanto na tradição reformada quanto na wesleyana, mas também às origens de nosso próprio protestantismo missionário na América Latina. Os trabalhos de Escobar, Arana e Padilla nos mostram, ao mesmo tempo, que não se trata de uma mera reinvindicação de uma tradição, e sim de buscar nela elementos que fecundem uma reflexão teológica e uma prática evangélica para a América Latina hoje. (BONINO, 2013, P. 46)

Ele ainda esclarece que o movimento da FTL teve início com a “afirmação da centralidade das Escrituras”, em resposta às hermenêuticas literalistas do fundamentalismo e aos reducionismos do liberalismo teológico, resultando em esforços hermenêutico-exegéticos significativos. Outro tema que está nas origens do movimento é o da cultura e da contextualização, conforme Bonino menciona: “Em Lausanne (1974), René Padilla rejeita a identificação da fé evangélica com o American way of life.”, defendendo, assim, o caráter encarnacional da palavra de Deus. Os aspectos “dos elementos estruturais – políticos, econômicos, sociais” latino-americanos também fizeram parte importante da pauta teológica desse evangelicalismo de renovação, não simplesmente como temas a serem tratados, mas como realidade a partir da qual se faria teologia. Ainda acrescenta que não faltou a esse movimento o espírito ecumênico necessário para que realmente fosse renovador.

Outros pensadores do protestantismo evangélico latino-americano chamaram essa forma de evangelicalismo, na qual se situa a FTL, de evangelicalismo radical. Entre essas pessoas está o bispo já falecido Robinson Cavalcanti, um de seus fundadores no Brasil.

Dentre os diversos grupos evangelicais destaca-se o que Quebedeaux chamou de “evangelicais radicais”. Este é particularmente interessante, porque embora tenha sua raiz remota no movimento de revitalização no anglicanismo britânico do século XVIII, que teve como representantes destacados nomes como o líder abolicionista William Wilbeforce, é um movimento que ganhou elaboração teórica e atuação pastoral na América Latina: o evangelicalismo radical latino-americano. O diferencial do movimento evangelical latino-americano, conforme Mark Ellingsen, está no fato que “os evangelicais radicais abraçam, talvez mais intensamente que outros, um compromisso [...] de que a ética sociocristã deve estar enraizada no testemunho bíblico e num estilo de vida regenerado”.[2]

O texto ainda acrescenta: “Como se vê, a palavra evangélico tem uma história rica de significado. Evangélico evidentemente tem a ver com a boa notícia de Deus em Cristo Jesus.”, e menciona o teólogo alemão Karl Barth que a utilizou no título de uma de suas obras: Introdução à Teologia Evangélica.

            Bonino conclui sua exposição sobre o que ele chamou de “rosto liberal” do protestantismo com a pergunta: “não seria também aqui necessário reclamar nossa identidade evangélica, examiná-la criticamente e procurar superá-la positivamente?” (BONINO, 2013, P. 47). Essa é uma pergunta que ainda faz sentido para nós hoje, pois o nome “evangélico” traz consigo uma herança histórico-teológica que vai além do próprio movimento em que ele começou a ser utilizado para um movimento mais específico, mas diz respeito às bases de nossa fé cristã. Ainda que, atualmente, o nome venha sendo usado para se referir a grupos aliados à sistemas religiosos e governos que são reconhecidamente comprometedores da vida, não se pode abandonar tudo o que ele representa em seu sentido correto e bom. Isso também se aplica ao cristianismo, nome de uma religião tão comprometido por experiências históricas tragicamente danosas, e o próprio protestantismo, que se tornou uma espécie de guarda-chuva onde se abrigam expressões religiosas boas e outras nem tão boas.   

            Não se trata de mudar o nome de evangélico ou deixar de usá-lo por causa das associações atuais a que ele vem sendo submetido, pois isso seria também abrir mão de toda a herança que ele carrega. No Brasil, o atual movimento de extrema-direita cooptou para sua propaganda um dos principais símbolos nacionais, a bandeira brasileira, mas, como abrir mão desse símbolo por ela estar sendo usada como ícone de um programa maléfico de governo e de campanha política? Afirmar-se como evangélico e, a partir dessa localização, colocar-se em disposição de diálogo ecumênico com outras expressões cristãs que também lutam pela vida, é favorecer a comunhão cristã e não entregar facilmente algo próprio de nossa identidade a grupos que o transformam em utilitário para suas investidas ideológicas, sem ao menos conhecer seus significados.

            A identificação como evangélicos progressistas, evangélicos radicais, evangélicos latino-americanos e outros termos faz parte desse processo de renovação identitária, necessário de ser sempre realizado à luz das novas questões colocadas pelo contexto e da tradição cristã que ele representa. No movimento da FTL a identificação como evangélica é um dos aspectos que a torna distinta, histórica e teologicamente, do movimento da Teologia da Libertação. Tais distinções são importantes não para gerar divisões ou intolerâncias, mas para reconhecermos as ricas contribuições de cada movimento e suas teologias, principalmente, no esforço do diálogo ecumênico.

 

Bibliografia

BONINO, José Miguez. Rostos do Protestantismo Latino-americano. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2013.

FERNANDES, Regina. Introdução às Teologias Latino-americanas. Campinas: Saber Criativo, 2019.

MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, Pentecostais & Ecumênicos. São Paulo: Universidade Metodista, 2008.

UNISINOS. Um ministro "terrivelmente evangélico" no STF?. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591406-um-ministro-terrivelmente-evangelico-no-stf. Acesso em 14/06/2021.

 

  


 

 



[1] Teóloga. Mestre em Teologia e Práxis e em Missiologia, Especialista em Cultura afro-brasileira e Indígena. Coordenadora de edições da Saber Criativo.

[2] UNISINOS. Um ministro "terrivelmente evangélico" no STF?. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591406-um-ministro-terrivelmente-evangelico-no-stf. Acesso em 14/06/2021.

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