terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

 


Povo de “dura cerviz”!

Regina Fernandes

 

Ainda ressoam as vozes dos seus profetas, eles não se calam,

ao povo que não era povo, que não tinha nome, que não tinha chão,

de ontem e de hoje.

E Amós grita em Israel,

-“Suspiram pelo dó da terra sobre a cabeça dos pobres...

E Miquéias grita em Judá,

- “As suas mãos estão sobre o mal e o fazem diligentemente;

o governante exige condenação; o juiz aceita suborno,

o grande fala dos maus desejos da sua alma, e, assim, todos eles urdem a trama.”

 

E os seus contadores de história e fazedores de culto,

no cerco e no pavor, visitam seus ancestrais,

e cantam e contam sua sabedoria,

desde as campinas de Moabe até a destruição.

Ergam sua voz Ancestros de nossa fé, contem essa história,

denunciem o mal hoje!

 

Assim, imaginamos essas vozes,

no entorno da fogueira, como em uma visão,

vozes escondidas nas letras, nas normas, nas regras, nos dogmas.

Vozes que contam que, há muito tempo atrás...

_ No movimento dos povos, ao som do lamento

 sobre os corpos dos jovens cananitas;

tomaste Canaã e mataste, e feriste, derrubaste os muros, as casas, as vidas;

não poupaste o ventre e nem as vozes cansadas.

Querias mais, matar a esperança,

ao se lançar como um lobo feroz,que devora a vida precoce, de inocentes, milhares deles.

 

Povo de “dura cerviz”,

Que revive sempre e sempre suas histórias,

Deus te quis justo. Mas, pisaste a Sedaqah,

 

E o Deus falante que te fala;

“Buscai o bem e não o mal para que vivam...”

“... que pratiques a justiça, e ames a misericórdia,

e andes humildemente com o teu Deus.”

 

Mas não o ouviste nos sábios,

ainda calaste os profetas,

Tapaste os ouvidos para o teu Sábio e Profeta.

Nem teu sofrimento, povo de “dura cerviz”,

que atravessa toda a sua história, que comove o Deus de seus ancestrais;

te move para a justiça, a misericórdia e a humildade da paz?

E, em nome do deus que criaste, de sangue, de guerra, de morte,

continuas a matar os teus cananeus, ao som do lamento

 sobre os corpos dos jovens; da destruição dos muros, das casas, das vidas;

dos ventres perdidos e do silêncio das vozes cansadas.

Continua a matar a esperança, ao se lançar como um lobo feroz

que devora a vida precoce, de inocentes, milhares deles, em Gaza.


domingo, 25 de fevereiro de 2024

 



MATEUS 5.27-32 - “Se preciso for, corta e joga fora”.


As leituras normativas e dogmáticas dos ensinos de Jesus podem induzir a erros em sua interpretação, pois como um sábio do seu tempo Jesus ensinava a partir das vivências de sua época, da cultura do povo judeu à qual pertencia e das suas regras sociais orientadas pela lei.

Nesse texto Jesus não está determinando uma regra de proibição ao divórcio ou contra o novo casamento, pois até em seu tempo isso era permitido. Mas, ele está corrigindo interpretações tendenciosas, que, como sempre, era realizada pelos homens, os favorecia e penalizava as mulheres.

Veja bem, as mulheres naquela sociedade do tempo de Jesus não podiam trabalhar, se autossustentar, sequer podiam ter vida social para além do interior do lar. Elas dependiam dos homens de sua vida, pai, irmãos e marido, para sobreviverem. Assim, uma mulher repudiada, além da vergonha social a que era exposta e rejeição da filha, não tinha como sustentar a si própria arriscando ter que buscar outros homens para sobreviver.  

Acontece que bastava “queimar uma panela de arroz” para ser repudiada, ou seja, elas estavam absolutamente nas mãos de seus homens e dos desejos deles, que manipulavam a lei em seu favor. Podiam olhar para outra mulher, desejá-la e arrumar desculpas para despedir a antiga companheira, legitimados por tais interpretações da lei.

Jesus percebeu isso! Ele identificou o injusto comportamento social da época e respondeu a ele. Ele mostrou como se devia interpretar aquela instrução da lei, e o texto coloca as duas instruções em sequência:

Primeiro: Não se trata de praticar o ato do adultério, mas qualquer que desejar outra mulher que não seja sua companheira já está praticando adultério. E o conselho dele é: controla aquilo que em você te leva a isso, através da figura “se preciso, corta e joga fora”.

Segundo: Não repudiem suas companheiras por razões fúteis. Lembrando aqui que naquela sociedade ela ficaria desamparada. Pois ela pode ter que se se envolver com outros homens para sobreviver (somente o homem era provedor).

Está claro que Jesus está defendendo as mulheres nesse texto, num contexto social que as colocava em absoluta dependência dos homens, portanto, de consequentes abusos.

Aprendemos muito com Jesus: 1) chega de interpretações tendenciosas do texto bíblico para validar praticar abusivas; 2) Tal qual Jesus, a leitura da Bíblia deve ser realizada pela Igreja e pelos pregadores para defender aqueles/as desfavorecidos na sociedade e libertá-los; 3) A boa leitura bíblica é denunciadora das injustiças; 4) Jesus era solidário às mulheres.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

 Aspectos Epistemológicos da TMI

 Regina Fernandes

Comecei a dar aulas de Teologia em 1995. Iniciei com Introdução ao Evangelismo usando as obras de Orlando Costas como material bibliográfico. Após fazer um curso de cinco dias sobre Hermenêutica Contextual com Padilla, no final da década de 90, organizado por Ricardo Barbosa na cidade de Brasília, resolvi estudar mais a Missão Integral. Sempre usei em minhas aulas textos de Orlando Costas, Padilla, Escobar, as obras organizadas por Steuernagel, documentos dos congressos e outros. Meus alunos (as) se encantavam com a ideia de uma missão integradora, mas quando escreviam seus artigos e monografias faziam Teologia da Libertação. Certa vez, quis saber por que isso acontecia, e me disseram: “Missão Integral é um movimento lindo, em termos de ideias é como uma nuvem grande e fofa sobre as nossas cabeças, mas quando levantamos a mão para pegar ela se esvai, desaparece na falta de organização teórica para a construção do pensamento!”.

Fiz um mestrado em Missiologia com teólogos da Missão Integral. Embora havia ideias muito interessantes, compreendi que os alunos/as estavam certos, pois percebi certa resistência em se assumir a teologia da Missão Integral. Ouvi a descreverem como sendo uma inspiração, um vento, uma brisa suave, até uma fumaça. Conclui que se ela é algo tão intangível em nível de ideias, há razão para que os jovens busquem outras teologias. Somente não compreendi muito bem na época a existência de uma fraternidade teológica, se não era para fazer, ordenar e construir teologias. Em outro mestrado, em uma faculdade Jesuíta, sob orientação do Pe João Batista Libânio, me propus em estudar o “como se faz teologia” latino-americana. Mas Libânio me avisou que não conhecia essa tal de Missão Integral, então, pedi ao René Padilla que lesse meus textos, o que de pronto ele aceitou e me acompanhou nos estudos.

Essas foram situações de vida que provocaram minha reflexão sobre uma possível teologia da Missão Integral, iniciada em 1998, testada em classes, leituras e observações diversas até minha atual experiência como presidente do CD da FTL.

A América Latina, assim como Ásia e África, foi o principal palco do missionarismo protestante moderno, que se espalhou por várias partes do mundo no impulso do fervor dos avivamentos religiosos, ao mesmo tempo, das políticas e ideais expansionistas e imperialistas norte-americanas e colonialistas europeus. Dentre as muitas interferências que os imperialismos e colonialismos fizeram em nosso meio está o esforço por nos convencer de que não deveríamos nos ocupar em fazer ciência, realizar pesquisas, construir pensamentos, portanto, teologias. No caso missionário, dentre as muitas razões para tais impedimentos, podemos apontar três delas:

1)     Doutrinária – temiam que teologias autóctones fosse, doutrinariamente, diferente da teologia deles. Ouvimos isso certa vez de um missionário inglês em relação à indígenas evangélicos, que não deveriam se envolver com teologia ou evangelização pois resultaria em sincretismo. Um pastor africano que fazia mestrado no Brasil disse que também ouviu isso de missionários em seu país, portanto, resolveu estudar sem o apoio deles.

2)     Controle – todos/as sabemos que o principal meio de emancipação de um povo é a educação. O educador Paulo Freire, no Brasil, escreveu várias obras sobre isso. Impedir o aprofundamento do conhecimento é sempre impedir autonomias.

3)     Ênfase prática – os missionários que vieram para a América Latina eram caracteristicamente práticos em seu ministério, daí reduzir à missão da Igreja à sua atuação prática e ensinar que a teologia válida é somente aquela prática.

Em 1980 Padilla escreveu um texto sobre Hermenêutica Contextual, de 25 páginas, que se tornou leitura clássica sobre o assunto. Além de missionários e missiólogos estrangeiros ele usou a teoria da fusão de horizontes do alemão Hans Georg Gadamer, estudos em metodologia teológica dos latinos Howard Snyder, da República Dominicana, do uruguaio Juan Luís Segundo e do argentino Severino Croatto.

Juan Luís Segundo propôs o Círculo Hermenêutico como método teológico, de Libertação da Teologia, e Padilla o utilizou como modo de aproximação das Escrituras. Todavia, Padilla critica a limitação às ciências, principalmente às Ciências Sociais, mediação teórica própria da Teologia da Libertação, para a análise da realidade. Para ele, essa restrição científica e inclusive ideológica transforma o Círculo Hermenêutico em um Círculo Vicioso. Para Padilla há possibilidade da participação das Escrituras e da experiência da vida no mundo como mediação para compreensão da realidade em todo o processo do fazer teológico. Fica evidente seu esforço por uma teologia latino-americana evangélica, que assegura a autoridade das Escrituras em todo o processo de construção teológica, ainda que o contexto seja visto como o ponto de partida da comunidade teologal.

O uso da metodologia hermenêutica de Severino Croatto ele também realiza de forma crítica, ao argumentar que não basta reconhecer a importância do contexto na compreensão bíblica, mas compreender a palavra de Deus nele e não para mera extração do querigma, pois isso incorreria em uma descontextualização das Escrituras.

Júlio Zabatiero, em um artigo publicado em 2017,[1] analisa esse texto de Padilla após 35 anos de circulação e aponta para a sua importância como um trabalho inicial na questão da metodologia hermenêutica da Missão Integral, mas chama a atenção para o salto hermenêutico que ele parece dar entre comunidade bíblica e comunidade atual, não considerando como deveria a recepção do texto bíblico ao longo da história da Igreja e da tradição cristã. Como biblista, Padilla não se ocupou em fazer o retorno à tradição do pensamento cristão a partir da fé evangélica latino-americana e das ideias de Missão Integral. Steuernagel apontou caminhos para esse esforço com a obra Obediência Missionária e Prática Histórica e Justo Gonzalez já nos fornece uma historiografia da Igreja e do seu pensamento teológico e missionário a partir de uma linguagem mais reconhecidamente latino-americana.

Nunca consegui ver esse texto de Padilla como mero artigo sobre hermenêutica bíblica, até mesmo por causa do seu diálogo com a metodologia teológica de Juan Luís Segundo. Para mim, ele serviu de ponto de partida para compreender como os teólogos e teólogas do movimento de Missão Integral estavam construindo seu pensamento teológico. Nele, estão as linhas iniciais de uma epistemologia da teologia da Missão Integral, que a define inclusive como teologia contextual. Perguntei a Padilla certa vez porque não avançaram nessa discussão, como fizeram Gustavo, Gutiérrez, Juan Luís Segundo, Leonardo Boff, Clodovis Boff, João Batista Libânio e outros da Teologia da Libertação. Ele respondeu: “éramos um grupo de teólogos pastores, professores, pais e ocupados com tantas coisas que não podíamos nos dedicar a esse aprofundamento teórico. Sabíamos que era preciso, mas nunca encontrávamos tempo e condições para esse trabalho!”. Isso se comprova no prefácio que ele escreveu para um livro que publiquei onde disse: “Outro dos valores desta obra é a articulação, de maneira sistemática, do método teológico da TMI. Poderíamos dizer que, com ela, a geração de teólogos à qual pertence Regina, salda a dívida não quitada pela geração que a precedeu — a dos fundadores da Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL).”

Aqueles e aquelas que são da área teológica sabem que não podemos falar de uma Missão Integral sem que falemos de uma teologia da Missão Integral. O próprio termo “missão”, no uso feito no meio cristão, inclusive na América Latina, procede da ideia do apostolado da Igreja no mundo, um conceito teológico. Não há como falar de missão cristã se não for teologicamente. O adjetivo “integral”, vinculado à Missão a partir da América Latina, já era utilizado na época pela filosofia, aparece em documentos do Vaticano II e em relatórios finais das CELAs. Sua ideia também se vincula às teorias das abordagens sistêmicas e da complexidade já em voga no período de surgimento do movimento de Missão Integral. Todavia, é possível afirmar que é na contemporaneidade que esse termo tem encontrado um melhor sentido possível para a compreensão da realidade com as ecoteologias e mesmo com as novas visões de mundo provocadas pelas tecnologias. Outro tema que merece aprofundamentos.

A Teologia da Missão Integral tem início com o Movimento de Missão Integral, que, conforme Padilla, é um movimento missional/pastoral. No incurso desse movimento, no esforço de explicá-lo e dar-lhe bases bíblicas, uma teologia começou a brotar do seu interior, ainda que não devidamente ordenada epistemologicamente. Diálogos e mediações teóricas foram realizados, o que se percebe na participação de tantos profissionais de outras áreas do conhecimento nas discussões, entre eles, podemos destacar Tito Paredes e a Antropologia Cultural.

Esforços como esse texto do Padilla sobre Hermenêutica Contextual também foram realizados por Pedro Savage, no texto: O Labor teológico num contexto latino-americano. Boletim Teológico FTL-Brasil 2/5 (1985) 53-81. Outro a se ocupar de métodos teológicos foi Juan Stam ao tratar sobre a contextualização “da teologia na América Latina”, nos textos: Teologia, Contexto y Práxis: Una Visión de la Tarea Teológica. Práxis 7 (2005) 121-136; e em: A Bíblia, o leitor e seu contexto histórico. Pautas para uma hermenêutica evangélica contextual. In: Boletim Teológico 1/3 (1984) 92-136 (SANCHES, 2020, p. 10). Devemos considerar também a importante obra de Samuel Escobar La Fé Evangélica y las Teologías de la Liberación, e um texto mais curto, mas igualmente importante: Uma análise latino-americana da Teologia Latino-americana. Um texto um pouco mais recente, organizado por Oscar Campos é Teología Evangélica para el contexto latino-americano. No Brasil chamamos a atenção para a obra de Júlio Zabatiero, Hermenêutica Contextual, que propõe um método semio-discursivo para a hermenêutica da Missão Integral, e o livro de Sidney Sanches: Teologia Contextual, que aponta aspectos metodológicos da teologia evangélica latino-americana. Há também uma contribuição importante de Catalina Padilla com sua obra: La Palabra de Dios para el Pueblo de Dios, que é um manual de hermenêutica contextual para o estudo grupal da Bíblia. É possível situar ainda hoje os estudos decoloniais, no âmbito do pensamento evangélicos latino-americano, como contribuições para uma epistemologia da teologia da Missão Integral, como aqueles que vem sendo realizados por Nicolás Pannoto.

Ainda na geração inicial do movimento de Missão Integral devemos situar Orlando Costas, que fez eco à afirmação de Clodovis Boff ao declarar que na América Latina estava surgindo uma nova maneira de fazer teologia. Padilla também fez essa mesma afirmação em referência à teologia evangélica latino-americana: “Trata-se de ‘uma nova maneira de fazer teologia’ que leva muito a sério: a Revelação de Deus em Cristo Jesus, da qual dá testemunho as Sagradas Escrituras, e o contexto sócioeconômico, político, cultural e religioso no qual a Igreja é chamada a cumprir sua vocação missionária.” (FERNANDES, 2019, p. 5)

As discussões dos textos mencionados podem ser vistos como apontamentos para uma epistemologia da teologia da Missão Integral, pois se referem aos modos como ela se faz, a partir da América Latina. Destacam a importância de se compreender o contexto com a ajuda das ciências diversas, das sabedorias populares, da nossa experiência de vida e, principalmente, das Escrituras Sagradas que são palavra de Deus na vida (como ensina Carlos Mesters). O recurso às Escrituras deve ser realizado também com mediações diversas e procurando compreender a vida em que a palavra de Deus foi entranhada. Todo esse exercício deve resultar em uma nova compreensão da missão da Igreja, transformadora do contexto, mas que também auxilia em outras compreensões da realidade no incurso do Círculo Hermenêutico. A suspeita, que Padilla chama de discernimento, é a atitude da teóloga, do teólogo e da comunidade teologal, sobre os diversos condicionamentos sobre nossa compreensão do contexto, das Escrituras e da prática da missão.

É um erro considerar que Orlando Costas, Juan Stam, René Padilla, Pedro Savage, Pedro Arãna, Samuel Escobar e tantos outros teólogos pensadores do movimento de Missão Integral, possuíam um pensamento simples e sem percursos epistêmicos. A questão é que, como disse o próprio Padilla, não houve tempo e condições propícias para essa ordenação. Mas isso não significa que não possa ser feito por uma nova geração de teólogos e teólogas e no âmbito da Fraternidade Teológica Latino-americana, que foi criada em 1970 justamente para isso. Se Missão Integral não pode existir na sua forma de teologia também acadêmica, não é integral.

Conclusões

As instituições teológicas na América Latina devem, certamente, se ocupar do estudo histórico, metodológico e sistemático da teologia da Missão Integral, para que nossa missão não continue a sofrer da dicotomia entre teologia x missão, pensamento x prática. Se o medo da maioria é a excessiva sistematização, temos que pensar em novos modos de sistematizar, pois para isso Deus nos fez criativos. Minha opinião, é que se fizermos isso no incurso do círculo hermenêutico, conforme proposto por Padilla e Juan Stam, não haverá risco de transformá-la em uma grande estrutura sistemática, por isso é nova maneira de fazer teologia. Uma teologia com possibilidade de ir se fazendo (no gerúndio), de ir se transformando conforme se transforma o contexto. Essa é sua grande novidade epistemológica.

Para maior aprofundamento do assunto leia a obra:



 Bibliografia

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BOFF, Clodovis. Teologia e Prática – Teologia do Político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978.

BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. 7 ed., Petrópolis: Vozes, 1998.

CAMPOS, Oscar. Teología Evangélica para el contexto latino-americano. Buenos Aires: Kairos, 2004.

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CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e Política. São Paulo: Temática Publicações. 1994.

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GONZALEZ, Justo. História del Pensamiento Cristiano. Buenos Aires: Methopress, 1965.

GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da Libertação, Roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987.

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PAREDE, Rúben. El uso de las ciencias sociales en la misionología. Disponível em: <http://www.kairos.org.ar/index.php?option=com_content&view=article&id=1427> Acesso em 29/10/2014.

SANCHES, Regina Fernandes. Teologia Viva. São Paulo: Reflexão, 2012.

SANCHES. Sidney. Teologia Contextual. São Paulo: Reflexão. 2012.

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SEGUNDO, Juan Luís. Libertação da Teologia. São Paulo: Loyola, 1978.

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STEUERNAGEL, Valdir. Obediência Missionária e Prática Histórica. São Paulo: ABU, 1993.



[1] ZABATIERO, Julio Paulo Tavares. Novos Rumos de uma Hermenêutica Contextual: 35 Anos de "Rumo A Uma Hermenêutica Contextual", de C. R. Padilla. In.: Revista Estudos Teológicos. São Leopoldo: EST. Disponível em: <http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/2473>. Acesso em 21/05.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

AVIVAMENTO E AVIVAMENTOS



Regina Fernandes 

Vem sendo noticiado nas redes de notícias evangélicas online, que está acontecendo um avivamento entre a comunidade acadêmica na Universidade Asbury. Alguns relembram que em 1970 houve um fenômeno parecido na mesma universidade. Não há necessidade de negar que o que está acontecendo naquele lugar, pois é ação divina, nem mesmo que seja um avivamento da fé daquelas pessoas e daquela comunidade. Mas, certamente, não se trata de um avivamento daqueles que se conta na história do cristianismo e que, inclusive foi gerador do evangelicalismo, independente das proporções que assumir e vou explicar por quê.

Avivamentos são “moveres” (movimentos) do Espírito que revitalizam o ânimo de grupos e comunidades diversas, sejam eles pentecostais ou não. Houve inúmeros na história do cristianismo. Como movimento de Deus no mundo sempre possuem o lado divino e o lado humano, tal qual a Bíblia, tal qual o próprio Jesus Cristo. O lado de Deus, através do seu Espírito, é mover, animar, revitalizar por uma força poderosa, pneumática ou não (no sentido pentecostal do termo) grupos diversos que estão no seu seguimento. O lado do grupo é experienciar e decidir o que fará com essa experiência. Sim, é possível e necessário pensar e decidir o que fazer nesses casos! – Reforço isso porque sempre que pensamos no poder do Espírito imaginamos algo tão controlador que perdemos toda capacidade de agir, de pensar, de decidir e mesmo de interagir com o Espírito, e não funciona assim. Na realidade, é essa compreensão equivocada que faz com que muitos fundamentalistas acreditem que os profetas bíblicos foram tomados pelo Espírito que ditava a eles o que pronunciar e escrever, de igual forma, muitos pentecostais que entendem que o dom profético se dá da mesma maneira. Mas, Paulo orientou a Igreja em Corinto sobre isso e explicou: “Pois vocês todos podem profetizar, cada um por sua vez, de forma que todos sejam instruídos e encorajados. Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas. Pois Deus não é Deus de desordem, mas de paz.” (1 Cor 14:31-33). Sua exortação faz entender e nos ensina que ao humano é dado o direito e a possibilidade de ordenar e direcionar a experiência para o bem da comunidade e do mundo: “de forma que todos sejam instruídos e encorajados”.

Um avivamento não visa o prazer individual ou mesmo de um grupo em uma forma privada e exclusiva, mas é sempre para algo. Não é incorreto entender que em um tempo de tantas perdas e dores devido à recente pandemia, guerras (Rússia e Ucrânia), terremotos (Turquia e Síria), abandono e morte (Yanomamis e demais indígenas no Brasil), guerras e fome (África) e tantas outras situações de sofrimento, o Espírito não queira animar comunidades para que sejam boas novas de cuidado e vida nessas situações. Mas o que será que farão com essa experiência em Asbury e em outros avivamentos pelo mundo afora, ou o que já estão fazendo com ela?

Sobre outros avivamentos, já ouvimos falar da reunião de oração pelas missões dos moravianos que durou 100 anos; também sabemos do avivamento britânico no sec. XVIII que inclusive deu origem ao metodismo e ao evangelicalismo, se espalhando por várias regiões da Europa e depois na América do Norte, onde virou “avivamentismo”, e como resultou no movimento missionário protestante moderno.

Ainda na esteira do metodismo sabemos do Avivamento da Rua Azusa que originou o Pentecostalismo. No Brasil e em outras regiões da América Latina e da África houve outro intenso avivamento na década de 60 do século passado, que ficou conhecimento como Renovação Espiritual e deu origem às igrejas renovadas de várias representações denominacionais históricas tradicionais. Esse último resultou na realização por vários anos dos famosos “Encontros de Avivamento”, onde denominações e igrejas se reuniam por dias em algum lugar e experienciavam esse “mover do Espírito”. Certamente na África isso ainda acontece com frequência entre vários grupos e nos pentecostalismos latino-americano também é comum. Mas, qual a diferença em Asbury? Será o fato de ser nos EUA e tudo o que acontece lá parece ser especial, universalizável e normativo para os demais povos, principalmente em tempos de globalização “democrática” onde os avivamentos nos EUA e Europa são noticiáveis e tomam as mídias enquanto em regiões da América Latina e África passam despercebidos? - Esperar para ver o que irão fazer com essa experiência.

Precisamos lembrar que nossas pneumatologias contemporâneas chamam a atenção para aspectos importantes do mover do Espírito no mundo que não eram tão destacados em teologias mais antigas, principalmente aquelas que nos trouxeram do sul global. O Espírito Santo é sempre o Espírito da vida, Espírito Criador e Espírito que vitaliza a criação. Quando ele nos reanima é para sermos participantes dessa sua missão em prol da vida, onde e quando ela estiver ameaçada. Todo avivamento deve ter isso como critério de discernimento, o quanto ele nos move e nos permitimos mover nessa direção. 

Uma coisa é certa, as missões modernas que foram realizadas no impulso do avivamento evangelical, não ouviram toda a orientação do Espírito ao animá-los em direção aos povos, pois ainda que tenham trazido para as nossas regiões a fé evangélica e as suas igrejas, o fizeram também no impulso e como braço religioso dos expansionismos econômicos e culturais e imperialismos modernos, dos quais até hoje ainda somos dependentes. É preciso, mesmo em avivamentos, se diferenciar o divino e o humano, o trigo do joio, o bem do mal, pois o Espírito, por mais que se mova poderosamente em nosso meio, não anula os nossos desejos e ações, pelos quais sempre devemos ser responsáveis.

O Espírito age em nosso meio, certamente age, mas o que faremos em nossa parte desse mover?



segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Imigração e Refúgio


 Regina Fernandes

 

1.    Brasil: um país de imigrantes

Como um país de vasto território, o Brasil não somente recebeu historicamente muitos imigrantes, como eles fizeram parte da configuração da população brasileira, que surgiu ainda que em condições adversas da mistura de povos. Na onda europeia, depois da imigração colonizadora portuguesa, chegaram ao Brasil suíços, alemães, italianos, ucranianos, poloneses, eslavos e outros que não somente contribuíram para a formação do nosso povo, mas para a organização da geografia e economia do país. Da mesma forma, vieram árabes, turcos e libaneses instalando-se em cidades diversas, principalmente São Paulo, contribuindo com o desenvolvimento seu comercial.

Na onda asiática temos os japoneses que começaram a chegar ao Brasil no início do sec. XX, da qual o navio Kasato Maru (1908) tornou-se um dos marcos, fazendo com que o Brasil se tornasse o país com maior população japonesa fora do Japão.  Ainda nesse incurso asiático temos recebido na atualidade coreanos e chineses com sua presença marcante no comércio principalmente nos centros urbanos. No influxo das imigrações têm vindo para o Brasil atualmente grupos de latino-americanos, africanos, haitianos e aqueles que chegam ao país como refugiados das perseguições políticas e religiosas como paquistaneses, sírios etc.:

- embora de diminuta expressão numérica, a entrada e saída de pessoas do território nacional nunca cessou. Poder-se-ia dizer que o Brasil beneficiou-se da "invasão de cérebros" vindos de países vizinhos, em grande parte dos quais afugentados pelos regimes autoritários dos anos 70, bem como a entrada de europeus, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial - que são, entre outros, exemplos de pequeno, mas intermitente afluxo de estrangeiros;[1]

 Em virtude disso, receber, interagir e integrar imigrantes não é algo de todo estranho ao povo brasileiro. Na realidade, o Brasil, além dos indígenas que são considerados os nativos do país e dos descendentes de africanos trazidos por meio da escravidão, o que não os coloca na condição de imigração pois seria amenizar um dano histórico, é formado populacionalmente por descendentes de imigrantes que se integraram à população existente e fizeram da nação a sua própria pátria. Em reconhecimento desse fato um imigrante boliviano que veio para o Brasil cursar pós-graduação e decidiu permanecer comentou que espera que os descendentes dos novos imigrantes se comportem de modo diferente, conforme afirma “Os filhos esqueceram que os pais foram imigrantes, e às vezes nos tratam como bichos de outro planeta”.[2]

 

2.    A condição de imigrante e refugiado no Brasil

Por outro lado, a tendência à naturalização da pobreza, da violência e desassistência à própria população brasileira incorre no risco de colocar tais imigrantes e refugiados em um mesmo espécie de bolsão daqueles que vivem em situações precárias no país. No Brasil não causa de todo estranheza ver estrangeiros em condições de grave carência em nossas cidades. Mesmo aqueles submetidos a situações de trabalho escravo ou abusos, acabam sendo contados no conjunto dos milhares de brasileiros que sofrem na mesma condição.

Há, todavia, questões diferenciadoras em relação à situação do estrangeiro no país, que normalmente desconhece, em princípio, as leis do país, sua história e cultura, organização e movimento social. Isto afeta principalmente aqueles imigrantes que vem em busca de melhores condições de vida ou aqueles que buscam refúgios, e que acabam se submetendo a situações adversas para fins de permanência em uma condição que ainda que seja precária, por vezes, é mais segura do que àquelas de origem.

Outra questão a se considerar é que o movimento é tanto de vinda como de ida, pois o país também é um grande exportador de migrantes, principalmente jovens, que seguem rumo aos países mais ricos em busca de educação, emprego e melhores condições de vida. O país que acolhe é também o país que precisa ser acolhido. O fluxo de emigração está certamente relacionado ao da constante imigração, que gera vínculos e possibilidades de movimentos de pessoas. Isto significa que as imigrações, no caso do Brasil, não somente têm trazido pessoas, mas aberto possibilidades de brasileiros também se deslocarem para outros países, como no caso de descendentes de italianos, espanhóis, japoneses etc.

Não é nossa tarefa aqui problematizar as situações provocadoras das migrações e imigrações, embora temos consciência que a globalização é um dos principais fatores geradores desse movimento global de pessoas, como afirmou a Profa. Neide Patarra:

É de fundamental importância considerar que os movimentos migratórios internacionais constituem a contrapartida da reestruturação territorial planetária - que, por sua vez, está intrinsecamente relacionada à reestruturação econômico-produtiva em escala global[3].

Mas é preciso lembrar que são causas que apontam caminhos para a inclusão e integração daqueles que recorrem ao Estado brasileiro como lugar legítimo de proteção e legalização para a construção de novas condições de vida. Isto significa que tais esforços não devem ser generalizados na sua forma, mas geradores de políticas e ações governamentais que resultem em soluções factíveis e de acordo com as situações específicas.

 

3.    Uma Pedagogia do Acolhimento

O verbo “acolher” tem o sentido de “receber em casa”, “recolher”, “receber com agrado”, “refugiar”.[4] Tanto quanto o Estado brasileiro possui a responsabilidade de receber pessoas que pedem abrigo, toda a sociedade brasileira deve ser chamada a envolver-se com essa tarefa, o que gera uma demanda pedagógica de desenvolvimento de uma consciência acolhedora, inclusiva e cuidadora. Isto já vem sendo feito no âmbito da educação e social em geral, inclusive com implicações legais, em relação a grupos diversos que formam a sociedade brasileira e que muitas vezes são colocados à margem dessa mesma sociedade. É preciso que tais esforços pedagógicos incluam o estrangeiro, principalmente aqueles recebidos em condição de refúgio e imigração, a fim de que sua inclusão não se dê somente no plano legal, mas de ampla interação social.

Isto é possível, ao menos na nação brasileira, porque tais estrangeiros são a condição recente da maior parte dos brasileiros em suas origens mais remotas. Trata-se de um acolher por ter sido também acolhido em terras que originalmente não nos pertenciam e das quais, de certa forma, não fazíamos parte. Isto coloca o estrangeiro sempre na condição de um igual e que está lutando pela vida, tanto quanto nossos antepassados o fizeram, possibilitando então nossa própria existência.

Outro fator importante é de ordem filosófica, de que nossa humanidade encontra sentido na medida que reconhecemos a humanidade do outro e, portanto, o tratamos com a dignidade própria dessa condição. A cultura trazida por ele torna-se enriquecedora de nossa cultura, a língua enriquecedora de nossa língua e o trabalho contribui para o desenvolvimento do país, tal qual tem acontecido no decorrer dos séculos em nossa nação.

Acolher, neste caso, não significa receber de qualquer forma, mas incluir e influir para a criação de oportunidades de trabalho, moradia, educação, saúde e para as demais necessidades humanas importantes de serem atendidas para uma vida digna. Acolher também não significa paternalizar ou assistencializar, que são formas camufladas de negação das potencialidades do outro e sua possível dominação; mas mediar possibilidades para que imigrantes e refugiados possam articular a construção de sua nova vida com todas as capacidades que ele traz em si e consigo, bem como desenvolve na experiência de imigração e refúgio. Neste sentido, inclusão é muito mais esforço de mediação,

 



[1] Neide Lopes Patarra. Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo: volumes, fluxos, significados e políticas. São Paulo Perspec. vol.19 no.3 São Paulo July/Sept. 2005.

[2] Comentário extraído de: <<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/01/1579103-nova-onda-de-imigracao-atrai-para-sao-paulo-latino-americanos-e-africanos.shtml>> Acesso em 13/09/2016.

[3] Neide Lopes Patarra. Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo: volumes, fluxos, significados e políticas. São Paulo Perspec. vol.19 no.3 São Paulo July/Sept. 2005.

[4] "acolher", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/acolher [consultado em 13-09-2016].

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

A importância da Teologia e das/os teólogas/os para a Igreja – uma análise histórica

 


A importância da Teologia e das/os teólogas/os para a Igreja – uma análise histórica

Regina Fernandes 

As vezes as pessoas se esquecem de algumas coisas importantes acerca da Bíblia, outras vezes não sabem sobre elas, outras vezes ignoram essas coisas e outras vezes as omitem propositalmente. O movimento teológico no contexto bíblico é uma dessas coisas. Aquelas pessoas que defendem a inspiração literal do texto bíblico, no estilo mais islâmico de transmissão divina, como o Corão, certamente têm mais dificuldade de admitir que a transmissão da revelação de Deus foi processual, dinâmica e humanamente participativa. Nessa compreensão a inspiração está mais no humano que registra a revelação do que no Espírito que a resguarda, pois, a depender do humano e do seu nível de participação, não é texto sagrado. Mas quem concebe uma inspiração mais dinâmica, em todo o processo transmissivo, realizada no movimento entre divino e humano, que confia que o Espírito Santo tratou de, nesse processo, resguardar o que era importante da revelação de Deus para nós, independente do humano, da tinta ou da data do registro final, consegue perceber claramente um movimento teológico na história bíblica, de homens e algumas mulheres pensando a revelação de Deus, participando assim da construção final do texto bíblico. Isso não seria novidade no modo encarnacional em que Deus age no mundo.

            Tratando desde essa perspectiva, é possível afirmar que os textos do Antigo Testamento são fruto de toda uma reflexão teológica, que se deu de forma sapiencial, narrativa e integrada na vida do povo de Israel. Podemos admitir, sem medo de pecar, que o Pentateuco é resultado de todo um trabalho não somente transmissivo, como se as pessoas fossem meros megafones nas mãos de Deus, mas de produção de conhecimento, no melhor estilo hebraico de construí-lo, onde o divino e o humano participam. Entretanto, também podemos considerar que se trata de uma teologia diferenciada, fontal para nossa teologia, com autoridade diferente da nossa. Da mesma forma, é possível pensar acerca da HDTa e até mesmo dos profetas (do profetismo de Israel), que ouviram e sentiram de Deus, interpretaram, associaram, refletiram, comunicaram e pensaram novamente até que se tornou registro. Os Escritos são mais fáceis ainda de se comprovar isso, pois expressam claramente o encontro com outros conhecimentos de sua época, outras filosofias e como são fruto de profunda reflexão nesse jogo de mistura de saberes.

            No Novo Testamento, vemos esse movimento teológico em Jesus Cristo, que gostava não somente de pensar o conhecimento de Deus, mas de conversar com pessoas, inclusive mulheres como Maria e a Mulher Samaritana sobre ele, gostava de provocar seus discípulos à reflexão, frequentava a Sinagoga judaica que era lugar de hermenêutica, de leitura e explicação das Escrituras. Jesus era um teólogo e legou isso aos seus discípulos, que ao contar sobre ele uns para os outros o fizeram teologicamente, os livros neotestamentários são somente o resultado de uma ebulição de contar histórias sobre Jesus, pensar acerca delas, pesquisar informações e registrar o que se pesquisou, assim surgiram os evangelhos. As cartas de Paulo são pura teologia, provocada pelas comunidades e suas necessidades de entendimento da própria fé e orientação da vida com Deus. Paulo derramou em seus escritos seu mais importante conhecimento, que usou para pensar, debruçadamente, sobre essa novidade de Jesus Cristo. As cartas gerais mostram também que seus redatores, apóstolos e outros, não somente fizeram teologia, mas o fizeram para o povo de Jesus Cristo em perseguição e em vista de dar a ele esperança.

            Na história do cristianismo não diferiu, dizem que no período antigo além dos bispos e líderes da Igreja debaterem (e até combaterem) os diversos assuntos da fé cristã em seu início, quando a teologia passou a ser chamada de teologia (por Agostinho de Hipona), as discussões eram tão fervorosas que até nas feiras e nas ruas as pessoas mais simples discutiam sobre as naturezas de Cristo, a configuração trinitária e outros assuntos. Os monges surgiram como alternativa para uma volta à espiritualidade, mas foi nos mosteiros que se fizeram inúmeras cópias dos escritos bíblicos e inclusive que surgiram as escolas, os teólogos mais conhecidos do período antigo do cristianismo surgiram dos mosteiros, pois não há espiritualidade sem teologia.

A Reforma Protestante foi um movimento teológico, que surgiu de inquietações hermenêuticas e da busca de entendimento da salvação. Os reformadores eram doutores em Teologia e também formados em outras ciências, exímios exegetas bíblicos. O documento provocador da Reforma eram teses afixadas em uma porta para gerar uma discussão metodologicamente escolástica.

No sec. XVIII um fenômeno moveu o protestantismo europeu e, além de ações ministeriais diversas, inclusive de cunho social, fez com que missionários e missionárias se espalhassem para várias partes do mundo, vindo inclusive para a América Latina implantar a fé protestante-evangélica. Uma das marcas desse avivamento foram as pregações fervorosas e evangelizadoras. Mas, poucos mencionam que esse avivamento iniciou dentro de uma universidade, Oxford, com estudantes de teologia e seus professores, tal qual o Pietismo que o havia influenciado encontrou seu espaço de gestação na Universidade de Universidade de Halle-Vitemberga. O missionarismo buscou seus enviados principalmente dentro das universidades e dos seminários teológicos. Sobre eles, também é importante mencionar que quando vieram para a América Latina iniciaram seus trabalhos com a colportagem da Bíblia e escolas dominicais, com o ensino.

Como se já não bastasse toda essa herança histórica para comprovar que não existisse Igreja sem teologia, e que é a teologia que dá sentido à Igreja e a Igreja que dá lugar, ambiente, à teologia, o pentecostalismo, movimento com discurso centrado na experiência, teve seu início numa escola em Topeka, EUA, em meio às aulas de um grupo de pessoas. É impressionante como o Espírito gosta de agir onde tem pessoas pensado e conversando sobre Deus.

Quando um pastor ou pastora prega ele utiliza para, preparar sua pregação, Bíblias que foram traduzidas e algumas até mesmo comentadas, livros de hermenêutica bíblica, dicionários bíblicos e tantos outros recursos elaborados por teólogos e teólogas. Quando um professor ou professora ensina em uma escola bíblica, ou grupo de estudo bíblico também utiliza muitos recursos parecidos para preparar suas aulas, inclusive vídeos e textos da internet preparados por pessoas da Teologia. Quando a Igreja afirma que é Igreja ela o faz a partir de conhecimentos teológicos, que foram passados a ela, e o mesmo acontece quando cristãs e cristãos afirmam: “sou salvo por Jesus e por sua graça!”. Foram teólogos e teólogas que, no decorrer da história, se debruçaram sobre esses temas e foram esclarecendo-os para o povo da fé. Deus os vocacionou para essa tarefa, e o Espírito Santo se debruça com eles sobre esses densos livros ajudando-os a entendê-los. Deus não faz teologia, pois ele tudo sabe, mas ele ama as teólogas e os teólogos, pois eles, com métodos diversos e ideias das mais estranhas às mais lúcidas, estão ocupadas/os pensando sobre ele e suas obras no mundo.

A pastora e o pastor, boa parte das vezes, estão tão ocupados cuidando das pessoas que não têm tempo para fazer estudos aprofundados dos assuntos da fé, por isso Deus chama pessoas para fazê-lo e dispor livros e outros recursos para eles. Isso também acontece com os demais líderes da Igreja e pessoas com seu tempo tomado pelo ministério. As pessoas vocacionadas para a teologia, para o pensamento da fé, precisam, dialogar, ouvir aqueles e aquelas que estão na linha de frente do ministério da Igreja, mas não poderão atuar diretamente nela, pois estudar e produzir leva tempo e desloca muita energia, e, a prova disso é que muito poucos se dedicam a isso. Não é prudente da parte da Igreja requerer que as pouquíssimas pessoas que se sentem vocacionadas para a área teológica deixem de fazê-lo para se envolver com as tarefas ministeriais que tanto outros e outras gostariam de ter a oportunidade de realizar, mas, ao contrário disso, deve enviá-lo/a prontamente aos estudos teológicos e estimular o avanço nessa carreira e dar a essa pessoas oportunidades e espaço de realizar a educação em seu meio, tanto na forma do ensino como na produção de materiais diversos de conteúdo teológico.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Uma família (não tão) ideal de Jesus!

 


Por Regina Fernandes

Esse texto é uma reflexão, a partir de uma análise da família de Jesus com base em uma hermenêutica mais realista e contra as idealizações patriarcais, principalmente contemporânea, que visam impor um modelo de família que não existe e nunca existiu, a não ser a partir de construções forçadas e sofridas, que muitos aderem sem o respectivo conhecimento bíblico e mesmo sem olhar mais detidamente para a configuração da própria família e suas imperfeições.

A Bíblia nos conta que José e Maria eram noivos. Na sociedade judaica daquela época o noivado era um compromisso tão sério quanto o casamento e a mulher somente poderia ser deixada em caso de repúdio. Quando José soube da gravidez de Mateus diz que ele intentou deixá-la, “repudiá-la”, porém, preocupado com ela, não quis denunciá-la às autoridades religiosas, mas fazer isso secretamente. Isso significa que, mesmo tendo a mesma fé que Maria, ele não deve ter acreditado nas justificativas que ela deu para a gravidez, pois se isso tivesse acontecido não teria pensado em deixá-la, e o redator bíblico ou a tradição (patriarcal) da Igreja não teriam tido a necessidade de justificá-lo. José sabia que ao deixá-la ela sofreria um dano social que a marcaria pela restante da vida. Outra situação de não assumir a criança é que naquela cultura quem dava nome aos filhos era o pai, então Jesus não seria “filho de...” (um homem, nesse caso), como era a composição dos nomes na época, inclusive para a inclusão genealógica. Mateus coloca Jesus na genealogia de José vinculando-o a toda ancestralidade davídica, mas faz questão de observar: “Jacó gerou a José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo.” (Mat. 1.16). Lucas, em sua genealogia de Jesus menciona: “Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era, conforme se supunha, filho de José...” (3.23).

O texto bíblico diz que um milagre dos céus, no caso, uma angelofania, impediu José de fazer essa loucura, de deixar uma jovem adolescente sozinha numa sociedade patriarcal, cuidando do próprio filho que nem mesmo teria o nome de um homem. A história bíblica continua relatando esforços de cuidado depois dessa mudança de comportamento de José, sua conversão para a família a partir da intervenção divina, a fuga para o Egito para proteger a criança e depois o ensina da profissão de carpinteiro.

Há muitas histórias nessa história, inclusive de relatos e tradições patriarcais da Igreja que tentam a todo custo preservar a figura masculina de José. Certamente, uma situação é verdadeira, em princípio e tendo como base essa condição masculina inicial José quis ir embora, abandonar a família, como muitos homens fazem desde os tempos mais remotos, e ainda sendo justificado pelos redatores do texto bíblico de que estava fazendo isso pelo bem da família. Na realidade, na maioria dos casos, sabemos, que homens abandonam as famílias pensando em si próprios, tomados por um egoísmo machocêntrico, pensando na sua própria reputação social, nos seus interesses, no seu bem-estar, na sua incapacidade de lidar com novas configurações de vida e orientados por sua eterna adolescência.

Maria era muito jovem quando engravidou, não é preciso muito esforço para imaginá-la cheia de dúvidas, de medos e de silêncio. O que falar numa hora dessas afinal? – Não se tratava somente de uma responsabilidade religiosa, mas de uma criança, do seu filho. Por vezes, esquecemos que quem estava na barriga de Maria era uma criança que correu o risco de ser abandonada por um pai humano. Descobrir uma gravidez, não a entender direito, ser desacreditada pelo noivo, o que implicaria em ser desacreditada por toda aquela sociedade, teria sido uma experiência muito difícil de vida. Somente essa situação tão de mulher em todos os tempos é suficiente para dedicar a Maria uma admiração especial.

José, diante da intervenção divina, decidiu assumir o filho, casar-se com ela, dar seu nome à criança, agir como pessoa responsável. José adotou Jesus.

Não sabemos com detalhes o que aconteceu depois, como ficou essa história de Maria com José, a tradição prefere acreditar que ele morreu cedo e Maria ficou sozinha, pois ele desaparece dos relatos e o que temos é a história de Jesus com a sua mãe. É possível que em outras tradições, mesmo apócrifas, seja possível descobrir algum fato novo. Maria é relatada diversas vezes ao lado de Jesus e, quando ele estava perto da morte, pediu a João que cuidasse dela a partir daquele momento, fazendo o inverso das intenções de José e tomando a iniciativa de protegê-la. O fato é que não deixou sua mãe sozinha em uma sociedade pouco favorável às mulheres. Isso significa que, de alguma forma, mesmo distante por vezes, ele havia cuidado dela até então. João nos conta que a levou para a sua casa, assumindo, portanto, seu cuidado e proteção. Ela deveria estar na casa dos 50 anos quando isso aconteceu.

Uma coisa que aprendemos dessa história é que o ideal de família perfeita, inclusive baseada na família de Jesus, não existe e não passa de uma construção forçada por tradições patriarcais da Igreja e por evangélicos conservadores atuais que desejam impor sobre os fiéis um modelo de família que nem eles próprios conseguem praticar em seus lares, a não ser por meio de ações extremamente impositivas.

Jesus veio ao mundo! Estar no mundo e humanizar-se é, de fato, adentrar para esses meandros das relações complexas, marcadas por amor e egoísmo, doação e retenção para si. As famílias são formadas por humanos que vivem nas sociedades construídas por eles, portanto, redes, inclusive familiares, em que não há perfeição. A família de Jesus não se diferencia de muitas famílias daquela época e mesmo de nosso tempo, cheias de dilemas, preocupada em dar satisfações sociais, esconder seus problemas das lideranças religiosas que se colocavam (e se colocam até hoje) como guardiães de normas rígidas, moralidades opressoras por eles próprios construídas. Há muitas hipocrisias nessas tais construções e lares de cristãos que escondem muitas coisas. A família de Jesus era formada por um homem que quase desistiu do lar, por uma jovem que embora muito silenciosa (guardava no coração) não se ausentou da vida do filho até mesmo contrariando regras sociais da época, o próprio Jesus que parecia “sumir no mundo” em sua missão. Era uma família não muito típica, mas como muitas no mundo e na história, se esforçava por estar junta, mesmo em meio às situações complexas da vida e de sua própria humanidade.

A questão aqui não é macular a memória de José e nem mesmo desmerecer sua figura, mas também não o justificar. O esforço é por tentar retirar o filtro das tradições a que a história deve ter sido submetida e enxergar José não somente como homem do seu tempo, mas das masculinidades forjadas nos sistemas sociais históricos com os quais convivemos. Nesse vaivém da leitura, temos uma fusão de horizontes históricos e reconhecemos como Deus agiu na vida de Jesus e como Jesus se revelou para nós uma humanidade diferente, que, mais uma vez supera, vai para além da cultura e de normas sociais injustas, principalmente aquelas patriarcais, faz diferente e ensina como fazer diferente, além de um modelo de humanidade para todos e todas nós, demonstrou aspectos de homem que todo homem deveria ser, daquele que vê e age além de si próprio e de seu autocentro, que se permite amar além de si mesmo e cuidar, doar-se e marcar as vidas dos filhos e filhas, inclusive em suas memórias; e isso para nós é Palavra de Deus. Jesus não se importou em ser, humanamente, filho da sua mãe, afinal essa é a memória mais forte que por nós foi herdada.

 

Caminhos para uma Missiologia Decolonial na América Latina

 


Por Regina Fernandes

Sabemos que a história da Igreja é, sem dúvida, uma história das missões cristãs e de como o cristianismo se espalhou e se organizou no mundo, inclusive tornando o Ocidente uma região predominantemente cristã. Entretanto, a prática da missão nem sempre se deu aliada ao seu pensamento, ao menos um pensamento mais profundo acerca dela, uma teologia da missão. Esta é certamente uma das razões pelas quais o missionarismo cristão assumiu, invariavelmente, posturas impositivas e intolerantes para com outros povos, as suas culturas e suas religiões. Tendo em vista que a Teologia é uma antiga área do conhecimento, para mais de dois anos a depender do que se entende por teologia, são relativamente recentes os estudos sistemáticos acerca da missão da Igreja e de seus fundamentos. A missiologia é uma área do conhecimento teológico que surgiu no séc. XX.

A Teologia Latino-americana teve origem na própria crítica aos missionarismos estrangeiros na América Latina. A TdL realizou a crítica às missões ibéricas que vieram para nosso continente no conjunto das colonizações. A teologia evangélica, articulada principalmente (mas não exclusivamente) pela FTL, tratou de recontar a história das missões protestantes modernas a partir da experiência latino-americana. A intenção nunca foi invalidar os esforços cristãos estrangeiros, mas usar da nossa liberdade para avaliar as fragilidades desses projetos e também apontar os seus aspectos positivos, para fins de pensarmos a missão a partir das nossas realidades e dessas críticas, aprendermos com os erros e os acertos.

A TdL ouviu Bartolomeu de las Casas, ouviu historiadores e seus próprios teólogos e teólogas utilizando metodologia historiográfica própria.  A FTL, em sua teologia evangélica tem escutado as diversas vozes que procedem dos seus núcleos, dos eventos realizados e das diversas iniciativas de fazer teológico que colocam em revisão nossa experiência sócio-histórica com as missões.

Nesse esforço, é preciso reconhecer que o cristianismo latino-americano é um dos maiores do mundo, e, nele, se destaca a Igreja evangélica, principalmente por causa dos pentecostalismos. O drama dessa constatação é que esse cristianismo tão numeroso ainda não conseguiu sinalizar com clareza a sua própria identidade, que é fundamental para nossa contribuição e presença latino-americana no cristianismo global. Isso se deve ao fato de que a forma como implantaram o cristianismo em nossas terras foi civilizatória e colonizadora. Sabemos, hoje, que isso não está na natureza do cristianismo em si, mas está na natureza das origens políticas e religiosas dos projetos missionários modernos, que correspondiam acriticamente às propostas desenvolvimentistas dos novos colonialismos.

A fé cristã, em sua natureza teológica, é encarnacional. Uma obra que explica isso com muita clareza é o livro de David Bosch, Missão Transformadora, onde ele analisa os diversos paradigmas teológicos e missiológicos aos quais a fé cristã foi se adaptando ao longo da história, um dos mais radicais deles foi o helenismo nos primeiros séculos da Igreja. No processo de helenização do cristianismo a mudança foi profunda, de ordem epistemológica, os cristãos foram abandonando a mentalidade hebraica do cristianismo original e passaram a compreender a fé por outras categorias de pensamento, da filosofia neoplatônica. Também sabemos que o Humanismo e o Renascimento serviram de pano de fundo cultural para a Reforma Protestante e que ela é fruto dessa mudança de paradigma de compreensão da própria condição humana no mundo. Os racionalismos modernos e o iluminismo também demarcaram profundamente o modo de fazer teologia na Europa, nenhuma teologia foi a mesma depois deles por mais que resistam aos seus métodos. Queremos com isso comprovar que a fé cristã e sua teologia são caminhantes no tempo e nas culturas e se adaptam, inclusive para ser compreensível a elas e às diversas realidades vivenciais.

Se assim é o cristianismo, como explicar todos os impedimentos sofridos em nossa América Latina, inclusive com dizimação de populações, como aconteceu com vários povos nativos da América Latina na época das colonizações ibéricas, e em nome da religião cristã e para a sua implantação? Como explicar os controles eclesiásticos, os impedimentos teológicos, os desestímulos aos estudos dos chamados “nacionais”, o envio excessivo de obras traduzidas, a imposição de modelos eclesiásticos, de culto e de educação teológica e outras práticas que foram próprias das missões protestantes modernas em nossa região, e que resultaram em uma igreja evangélica na América Latina, mas que ainda não consegue se reconhecer latino-americana?

É em vista dessas situações que precisamos falar de colonialismos e decolonialismos. É fato que a TdL foi mais propositiva em relação a esse assunto, até mesmo devido à sua radicalidade e à sua orientação revolucionária. A FTL foi comprovadamente mais tímida em se assumir como teologia decolonial, pois para isso ela precisa admitir que tanto as missões católicas e protestantes como suas teologias foram claramente colonizadoras, ainda que também aponte os aspectos positivos delas como sempre faz em seus documentos. No âmbito da FTL é preciso ter a maturidade para entender que fazer a crítica às missões que foi o seu próprio berço não é o mesmo que desmerecer esses esforços.

Continuar a repensar a missão da Igreja e de perspectiva crítica, é urgente. É preciso considerar que a reflexão acerca da missão desenvolvida no século passado se deu com o suporte das teologias ocidentais e resultou em uma história das missões a partir das grandes empresas evangelizadoras e, invariavelmente, na perspectiva da conquista dos povos. Um outro ponto de vista dessa história precisa ser validado, ao menos por nós. Há necessidade atual de uma teologia da missão que se faça a partir dos povos conquistados, dominados, colonizados, subalternaizados de modo que eles possam contar sua própria história como campo de missão, e recorrer ao texto bíblico a partir de outras perspectivas. Uma nova compreensão da missão, com outros fundamentos, pode surgir de tais esforços. A missão a partir da América Latina precisa se fazer de outras maneiras e à luz de suas próprias teologias, de uma nova leitura bíblica, para fins de ser ação libertadora na América Latina, conforme adverte o próprio Moltmann fazendo referência ao papel da Igreja no mundo onde ela atua:

A Igreja deve refletir e representar o Reino de Cristo em primeiro lugar dentro de si mesma. A ordem de sua comunidade não pode ser adotada ou determinada pela situação de domínio e dominação da sociedade em que vive, pois ela deve corresponder a seu Senhor e representar para a sociedade uma nova vida. (MOLTMANN, 1980, p. 8)

Sobre isso, nas últimas décadas, vêm se falando principalmente no âmbito das humanidades, das novas epistemologias latino-americanas e caribenhas. Elas contemplam os vários cenários de lutas e representações sociais que propõem outros modos de saber, a partir dos múltiplos contextos da América Latina e Caribe, e nas suas ricas formas de linguagem e diversas sabedorias. Tais discussões podem ser situadas no conjunto dos debates acerca das epistemologias do sul global. Neste mesmo conjunto de discussões e em relação a eles estão também as teorias decolonias, que propõem formas de superação aos inúmeros meios de controles e dominações que incidiram e incidem sobre a América Latina pelas empresas e projetos colonizadores ao longo da história moderna, nelas, incluindo as missões.

Precisamos de uma missiologia que proponha não somente uma nova compreensão da missão, mas que contribua para uma outra forma de ser evangélico na América Latina e em todos os lugares onde está fé for levada. O que estamos dizendo é que conforme entendemos nossa missão no mundo como Igreja será a forma como nossas identidades serão construídas. Uma missão para a justiça do Reino de Deus, que provoque um entendimento mais profundo desse compromisso, certamente contribuirá para uma vivência religiosa evangélica mais pacífica, reconciliadora e restauradora da criação. Mas uma missão com um discurso e práticas bélicas e colonizadoras, certamente resultará em igrejas intolerantes e dadas a polarizações e violências.

Isso acontece porque a ideia de missão é a mesma ideia de nossa razão como cristãos e cristãs no mundo, o nosso papel dentro das diversas realidades sociais. Se assumirmos a compreensão de missão baseada no uso inicial do termo pelos jesuítas de contrarreforma, que foi o espírito em que foi empregado, como uma campanha militar, agiremos como soldados que conquistam povos, mas se nos basearmos na missão de Jesus, com a ideia de serviço e doação, esvaziando o termo de toda a sua violência histórica, seremos, de fato, comunidade testemunhal no mundo.

Uma outra missiologia, a partir da América Latina, sua cultura e da sua experiência histórica, pode contribuir para sobrepor qualquer outra teologia da missão que em partes, ou em sua totalidade, não corresponda ao evangelho encarnacional de Jesus Cristo e apresente uma prática colonizadora. O movimento de Missão Integral poderia propor essa missiologia, mas, infelizmente, a resistência interna do pessoal da missão de assumir seu caráter teológico e do pessoal da teologia em reconhecer seu potencial teológico e mesmo a sua vigência atual, dificulta no avanço de sua ordenação missiológica.

O modelo missional praticado no século XIX e XX, que deu origem as agências missionárias e envios de missionários especializados, já não atende os tempos atuais, principalmente no antigo mundo dos dois terços como denominava Orlando Costas. Além da exaustão do modelo, ele, já em sua época, apresentou problemas irrecuperáveis, que estavam na sua própria gênese e compreensão pouco aprofundada de missão, sim, devido à ausência de uma missiologia profunda, como vemos na pauta das discussões da I Conferência Missionária Mundial de Edimburgo, que priorizou a estratégia e os métodos em lugar da problematização da missão. Em Lausanne, sabemos que esse assunto da missão e seu entendimento mais amplo foi tocado de modo involuntário por sua organização, foi provocado dentro do próprio congresso por representantes, inclusive, da América Latina.

Como podemos avançar em uma prática missionária que corresponda melhor aos tempos se não a pensarmos profundamente? Se quisermos caminhar em direção à uma teologia de missão e a uma missão da teologia precisamos discutir o assunto e tratá-lo com seriedade. Para isso, precisamos assumir o caráter colonizador das missões protestantes, do próprio termo missão, o espírito de conquista que sempre está na bagagem missionária, a recorrente subestimação dos povos e grupos evangelizados tanto em sua cultura quanto em sua capacidade teológica. Precisamos sair dos lugares abissais em que a teologia ocidental nos coloca, como aquela parte do mundo em que as teologias devem ficar escondidas sob os nomes de étnicas, exóticas, específicas, e emergir, ainda que seja para nossos próprios mares, nos situando em lugares de visibilidades. Isso ninguém fará por nós, somos nós mesmos que temos que fazer, que em nossas próprias libertações, nos permitamos des-esconder, des-impedir nossas sabedorias, nossas teologias, nossas vozes. Somente nessa nova postura construiremos uma missiologia libertadora, integradora, propositalmente decolonial.

  Povo de “dura cerviz”! Regina Fernandes   Ainda ressoam as vozes dos seus profetas, eles não se calam, ao povo que não era povo, q...